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SOBRE O POST DO ESTUPRADOR ARREPENDIDO
O post que publiquei anteontem, que começa com o relato de um estuprador arrependido, que diz ser um monstro, e continua com uma crítica ao punitivismo excessivo de muitas feministas, está me rendendo uma porção de críticas. E isso que eu não tenho Facebook, então só estou acompanhando o que chega até mim. Tipo: tem uma leitora anônima exigindo que eu não me auto-intitule feminista nunca mais. Outra, esta querida e com nome, dizendo que eu deveria entregar a confissão dele à polícia. Outra, esta não tão bacana, torcendo para que eu seja estuprada, aí sim eu aprenderia a empatizar com as vítimas.
E há muita gente que se sentiu mal em ler o post. Transcrevo aqui o email que recebi ontem da C.
"Fui estuprada por volta dos meus 7 anos de idade por um parente, muito parecido com essa história que o T. contou. Por muito tempo me perguntei se ele sabia o que tinha feito, se ele tinha passado por algo parecido e por isso tinha feito aquilo. Foi só por volta dos meus 18 anos e com a ajuda das minhas amigas feministas que finalmente aceitei que o que ele fez comigo foi horrível, injustificável, imperdoável.
Você diz que é coisa de reacionário só se preocupar com a punição do estuprador. Você diz que o feminismo deve reabilitar essas pessoas e não excluí-las.
Você diz que um pedido de desculpas poderia ajudar a vítima a ter um encerramento. Diz também que nunca passou por isso. Pois bem, sou alguém que passou por isso. E tive muita sorte de encontrar pessoas que nunca duvidaram da minha história, mas conheço muitas que foram postas em dúvida, muitas que veem os amigos sendo amigos do estuprador. E acho que posso falar em nome delas que nós queremos excluí-los, nós não queremos um pedido de desculpas, nós não nos importamos com o bem estar de nossos estupradores. E te digo que você não tem o direito de me dizer que eu não posso querer o mal do meu estuprador. Eu não tenho obrigação nenhuma de perdoá-lo ou de querer a reabilitação dele. Você não pode excluir a mim, minhas amigas ou qualquer outra mulher do movimento por querer isso. Você não pode nos rotular de reacionárias.
Enfim, não sei se esse cara está de fato arrependido ou não, mas pouco importa se ele não consegue dormir à noite e está mal com o que fez. Porque tenho certeza que suas vítimas passam por coisas bem piores.
O que eu sei é que senti um nojo tremendo de ler esse seu post, mas não falo nada disso pra te atacar.
Assim como você não pode decidir as posturas feministas, eu também não posso. Mas acho que você deveria pensar melhor na hora de falar sobre um assunto tão traumático quanto esse, algo pelo qual você não passou e portanto não entende, tenho certeza de que não fui a única que ficou mal com as suas palavras. Coloque as vítimas à frente da consciência pesada e do mal estar do estuprador."
Sinto muito pelo que você passou, C. Eu particularmente não duvido das vítimas. Empatizo com elas. Inclusive, já publiquei mais de quarenta guest posts de leitoras narrando o abuso que sofreram, e outros oitenta textos meus falando sobre estupro, ora por um viés mais teórico, ora através da análise de algum caso mais famoso, ora através da crítica de obras de ficção. Tem machista que diz que sou obcecada pelo tema. Deve ser porque toda mulher tem uma história de horror pra contar.
E este nem foi o primeiro texto que publico de um estuprador. Em dezembro publiquei um de uma estupradora que tinha dúvida se o que ela havia feito foi estupro (sim, foi, na minha opinião).
Creio que há gente que não entendeu bem o que escrevi. Eu não disse que feministas são reacionárias. Eu disse que não podem ser. Pra mim, reaça é aquele que, entre outras coisas, é contra os direitos humanos. Aquele que adota como slogan "direitos humanos para humanos direitos". Aquele que quer castração e pena de morte para estuprador. Aquele que aplaude a ação policial que matou 111 presos no Carandiru em 1992 (entre eles, decerto, alguns estupradores). Aquele que, como Bolsonaro, acredita que no massacre "perdeu-se a oportunidade de matar mil lá dentro".
Aquele que defende a tortura. Aquele que defende a redução da maioridade penal, primeiro para 16 anos, daqui a pouco para 6 anos. Você é feminista e tem essas posturas? Acho que você deveria repensá-las.
Eu não disse que o feminismo deve reabilitar pessoas. O sistema penal deve reabilitar pessoas. O feminismo, como parte dos direitos humanos, deve acreditar na reabilitação das pessoas. A minha pergunta é: o punitivismo é tudo que queremos? Punir resolve?
Punir faz parte da pena, e em nenhum momento estou abrindo mão da punição. Mas, como citei no exemplo da violência doméstica (que ninguém rebateu), só punição não é suficiente. Atenção: apontar que só punição não basta não equivale a desprezar a punição. Estupro é o crime que menos rende condenações. Poucos casos são denunciados e, entre os que são, apenas 2% terminam em condenações penais. Eu quero punição de estupradores. Mas quero também reabilitação.
Sobre o caso específico do T., tudo que tenho dele são dois emails, numa conta com nome fictício, que provavelmente foi criada só pra se comunicar comigo. Pode ser que ele não esteja arrependido. Pode ser que ele nem estuprou alguém. As pessoas inventam histórias na internet (e fora dela também). Mas tenho como regra crer no que os leitorxs me escrevem. Não tenho tempo nem vontade de investigar ou duvidar de cada email que recebo.
Minha interpretação dos emails de T. é que ele abusou de sua irmã e de seu primo quando eles eram crianças, e que T. também era menor de idade quando isso aconteceu (ele se identificou com este guest post; faz dez anos da última vez; ele não começou sua vida sexual). Semana passada recebi dois emails que me chamaram a atenção: um de uma moça que, quando tinha cinco anos, foi bolinada pelo irmão de oito. Ela queria saber: foi estupro? Outro de um rapaz que, tempos atrás, quando tinha doze anos, abusou de uma prima muito menor. Devo recomendar que este rapaz se entregue à polícia?
Eu não publicaria jamais o relato de alguém que se orgulha de ter estuprado uma pessoa (ou um animal). Mas pra mim é válido o relato de um homem que se arrepende do que fez, que sofre com isso, que foi ele mesmo vítima de abuso na infância, e que aprendeu, através de blogs feministas como o meu, que o que ele fez foi estupro. Porque boa parte dos estupradores nem sabe que estuprou.
Não existe céu feminista. Não tenho a menor intenção (nem poder) de cassar carteirinha de alguma feminista. Em momento algum eu disse como vítimas de estupro devem se sentir ou agir. Entendo perfeitamente uma vítima que não perdoe nunca quem a estuprou, e que nutra sentimentos de vingança por ele. Mas esse sentimento pessoal é um pouco diferente de concluir que a reabilitação não importa. Ou de exigir pena de morte e castração para todos os estupradores. E, novamente, se você pensa assim e é feminista, tudo bem. Mas não considero esse tipo de pensamento condizente com a defesa de direitos humanos.
Se me permite uma comparação, acho que esse punitivismo excessivo (ou seja, a preocupação apenas em punir, não em reabilitar) tem algo em comum com a reação de quem lê um post do qual discorda e, por conta dele, decreta que tudo que está num blog, incluindo todos os posts passados e futuros e a índole da autora, não presta. Vivo repetindo: vamos aprender a discordar. Há uma distância entre criticar um post e chamar alguém de mau caráter ou lixo humano. Já fui chamada disso noutras ocasiões por feministas que discordaram de mim em algum ponto.
Há muita gente que discorda sem agressões, lógico. Li críticas de que estou querendo substituir punição por arrependimento, e que quero "cristianizar o feminismo". Arrependimento, perdão e culpa não são sentimentos exclusivamente religiosos. Eu sou ateia, fui ateia durante 90% da minha vida, fui criada sem religião (nem batizada eu sou, e admiro muito meus pais por essas decisões), e tenho esses sentimentos. Associar perdoar, se arrepender, se culpar apenas com cristianismo equivale, pra mim, a dizer que ateus não têm valores. Se pegamos valores tão comuns e os tacharmos de religiosos, não vão sobrar muitos valores pras pessoas não religiosas.
Ah, outra coisa: várias pessoas nos comentários mencionaram O Lenhador, com Kevin Bacon. Vi o filme já faz um tempinho (trailer aqui e aqui) e ele é bastante perturbador, assim como qualquer obra (ou post) que foca num personagem que cometeu um crime hediondo. Porque não tem jeito: focar nessa pessoa é humanizá-la, e o que mais queremos é considerar estupradores, pedófilos, assassinos uns monstros. Assim não precisamos pensar muito no que eles fazem. São monstros. Pessoas "normais" não estupram nem matam. É triste que qualquer estatística desminta esse senso comum.
O Lenhador é sobre um pedófilo que sai da cadeia após doze anos cumprindo pena. Ele tenta reerguer sua vida, mas as suspeitas das pessoas são sempre muito fortes. E eu acho isso justificável. Abusadores muitas vezes são criminosos recorrentes. Se eu fosse mãe, detestaria ter um pedófilo perto da minha casa e das minhas crianças (mesmo que seja um pedófilo que se mostre arrependido e que já pagou pelos seus crimes).
Mas, pensando no cara: se ele foi punido e está aparentemente reabilitado, não seria errado persegui-lo? Distribuir folhetos em sua vizinhança dizendo que ali mora um pedófilo, pichar sua casa, ameaçá-lo de morte -- tudo isso não vai contra os direitos humanos desse cara? Ou ele não merece direitos humanos, porque direitos humanos devem ser apenas para humanos direitos?
É complicado, e é essa reflexão que quero propor. No caso de um pedófilo que foi condenado, cumpriu pena e saiu, acho bem razoável proibir que ele tenha qualquer contato com crianças. Em O Lenhador, o personagem interpretado por Kevin Bacon tem uma casa bem em frente a uma escola. Aí não, né? É possível passar a vida sem grande interação com crianças, e pra mim parece certo exigir isso de um pedófilo. Mas e se ele tiver filhos?
Difícil! O que eu sempre tento fazer aqui no blog é provocar reflexões. Fazer pensar. Provocar. E, se possível, abrir a cabeça. A minha também.
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