TER FILHOS COMO MISSÃO
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TER FILHOS COMO MISSÃO


Algo estranho vem acontecendo nos EUA. Não tenho estatísticas, e o que vou dizer se sustenta (ou não) apenas na minha observação: muitos americanos consideram ter filhos uma missão quase religiosa. Na Europa, como a gente sabe, o número de bebês vem caindo há décadas, e isso é um problema, porque a população envelhece. Os governos até incentivam pra que casais tenham filhos. Nos países em desenvolvimento o número também tem caído, e isso é visto (muitas vezes exageradamente) como solução para todos os problemas. Mas nos EUA ter ou não filhos virou uma questão de combater a queda do império americano, que não começou com a crise de 2008. Ter filhos é um enfrentamento a todos os números que apontam que americano é um campeão do desperdício e do egoísmo por dirigir carrões e não se preocupar com o meio ambiente, e que se mais países tivessem o padrão de consumo dos EUA, bye bye mundo. Então muitos americanos se sentem atacados e resolvem ter mais filhos justamente para tentar manter esse padrão e seu lugar ao sol. É um jeito de dizer: “Ah é? Ah é? Vocês não perdem por esperar!”. É também um meio de afirmar que eles são o povo escolhido ― é bom que o planeta esteja sendo populado por gente tão iluminada quanto eles. Voltou a estar na moda, por exemplo, famílias ricas e religiosas terem mais de cinco filhos. Quanto mais, melhor. Espalhar a sementinha é importante. E nem se discute o narcisismo da situação (quem disse que o seu gene é tão especial que deveria ser passado para várias gerações?).
Como todas as questões, ter ou não ter filhos é uma questão política. E ideológica. Tanto que há termos técnicos pra tudo. Casais de classe média sem filhos ganharam o termo dinc ("double income, no children", ou renda dupla, sem filhos). Homossexuais, que na maior parte dos estados americanos não podem casar ou adotar crianças, chamam pessoas com filhos de breeders (procriadores). É um termo um tanto pejorativo, porque considera que a função da maior parte dos casais heterossexuais é ter filhos (e não é?). Eu sempre achei o termo bem-humorado, pra falar a verdade.
O filme Idiocracy popularizou um pouco o assunto. A comédia (trailer aqui, sem legendas) diz que as pessoas mais inteligentes e estudadas têm menos filhos, ou simplesmente não os têm, e que, num futuro próximo, isso pode causar sérios problemas: só os burrinhos procriariam. O filme exagera a situação e fala de meio milênio pra frente, mas há muitos que levaram a mensagem a sério. Há quem interprete esse recado como um chamado, sua maneira pessoal de contribuir com a humanidade. Ou, pelo menos, com aquela parte da humanidade que vale mais, os americanos.
Trent parece ser uma dessas pessoas. Ele tem um dos mais procurados blogs de finanças pessoais nos EUA, The Simple Dollar. Mas, às segundas, costuma responder perguntas de leitores sobre outros assuntos, e é aí que geralmente se mete em encrencas. Como seus leitores conhecem o orgulho do autor pelos três filhos que tem, volta e meia aparece uma pergunta sobre a contribuição à sociedade dos que não têm filhos. E o sujeito é radical: ele compara essas pessoas a velas ao vento, que vão se apagar quando morrerem. E é o tipo de discurso raro de escutar de um não-americano. Fique com a minha tradução, cheia de falhas:

Acho irônico que um cara que escreve um blog que provavelmente alcança milhões de pessoas pensa que ter filhos é a melhor maneira de propagar suas causas”.
E Trent respondeu: “Se não tivermos filhos, todos seremos como velas ao vento. Em cem anos não haveria a raça humana. Não passaríamos nada para o futuro, nenhum de nós. Portanto, qualquer um que escolhe não ter o fardo de criar uma criança é uma vela ao vento. Está contando com outros para continuar a chama, os outros que fazem a vela. [...] Minha reação com qualquer um que chama um pai de 'procriador' é que essa pessoa está completamente confortável com a extinção completa da raça humana. Se ela não estivesse confortável, não denegriria aqueles que pegam para si a tarefa geralmente ingrata de criar a próxima geração de pessoas. Todo o bem que faço neste blog não se compara ao impacto que causo ao levar uma criança à idade adulta. [...] Se eu faço a coisa certa, posso entregar uma criança que tem o potencial de encontrar a cura do câncer ou desenvolver uma nova planta que pode alimentar crianças famintas ou criar arte que verdadeiramente pode elevar a raça humana ou, talvez o melhor de tudo, encontrar felicidade autêntica no mundo e maneiras de compartilhá-la com outros. Se eu faço a coisa errada, entrego um psicopata. Não estou dizendo que outros não têm influência. Mas independente do tamanho da influência, ela não se compara com as milhares de horas que pais gastam com seus filhos, ensinando-os língua, creenças, costumes, traços de personalidade, perspectivas do mundo, habilidades pessoais, e inúmeras outras pequenas coisas”.

Os leitores caíram de pau, compreensivelmente. Trent não fala uma palavra sobre pais adotivos. E as pessoas infertéis? E os gays? Gente que não encontra o grande amor? Padres e freiras? Mulheres que perdem os bebês durante a gravidez? Pessoas com algum tipo de problema genético que decidem não passar a seus filhos o mesmo problema? Madre Teresa de Calcutá? Essas pessoas não contribuem com a sociedade porque não espalham suas sementinhas? E mais: pessoas que não têm filhos não ligam pra extinção da raça humana?
E eu acho engraçado considerar que ter um filho é uma contribuição tão enorme pra humanidade. É meio arrogante, não acha? Alguns desses bebês farão algo importante, outros serão psicopatas. A enorme maioria será apenas uma pessoa como qualquer outra. Uma pessoa, aliás, que contribui para devastar o meio ambiente só por estar existindo.
E, sei lá, eu odiaria ter um pai que esperasse de mim nada mais nada menos que a cura do câncer. É responsabilidade demais pra uma criança. Por outro lado, nesse ponto me identifico com Trent. Eu ficaria muito decepcionada se eu tivesse um filho e ele não fosse algum tipo de gênio (nem que fosse gênio numa coisa não muito produtiva como xadrez). Mas essa expectativa já é um bom motivo para não ter filhos.




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