TOMARA QUE SEJA MENINO
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TOMARA QUE SEJA MENINO


Foi a sempre antenada Valéria que me passou esta notícia triste: “Mãe engana até cartório e cria filha como se fosse menino em Goiás” (veja o vídeo). Uma mãe falsificou o documento de nascimento da filha e conseguiu registrá-la como Samuel. Depois que a tia da menina (com menos de dois anos) tirou sua roupa e viu que ela não era um Samuel, a mãe perdeu a guarda da criança, pelo menos enquanto for julgada.
O que chama a atenção é como a menina aparece na reportagem -– coberta de rosa dos pés à cabeça, como se estivesse sendo recondicionada a ser mulher. A matéria também fala que ela recebeu “brinquedinhos femininos”. Porque, né?, deus proíba que ela cresça sem aprender a dar papinha a uma boneca ou limpar a casinha! Aí sim seria um trauma irreversível!
Parece que a mãe quis criar a menina como menino porque ela, a mãe, havia sofrido abuso sexual na infância, e queria proteger a menina do mesmo destino. Espero que essa mãe receba tratamento psicológico e possa criar a criança. É meio evidente que a mãe não cometeu a fraude para prejudicar a filha, e sim para protegê-la. E, se a gente pensar nas nossas histórias de horror -– não sei se toda mulher tem uma história de horror pra contar, como eu já disse algumas vezes, mas a maior parte de nós certamente tem -–, verá que só o fato de nascer mulher já nos coloca em situação de risco.
Este caso me lembrou de outros. Um documentário lançado este ano diz quais são as palavras mais fatais do mundo. São “É uma menina”. Essas três palavrinhas valem uma sentença de morte em vários países do planeta, onde ser mulher é visto como uma irreversível desvantagem social e econômica. Segundo as Nações Unidas, existem aproximadamente 200 milhões de meninas “desaparecidas” no mundo. Há indícios que Índia e China eliminam mais crianças do sexo feminino que o número de meninas nascidas nos EUA a cada ano. O distrito chinês com o pior número tem 163 meninos registrados para cada 100 meninas. Taiwan, Coreia do Sul e Paquistão também são países em que meninas não desejadas são abortadas, assassinadas ou abandonadas.
Como sabemos, genocídio é a matança de um grupo específico. E estamos falando de um grupo, mulheres. É um genocídio secreto dirigido a um só gênero, um generocídio.
E é um crime muitas vezes perpetrado por mulheres, no ambiente doméstico. Sabe como só gerar filhas colocava em risco a vida das esposas de Henrique VIII, lá pelo século 16? A mesma coisa continua acontecendo hoje em vários países. Na Índia, várias mulheres que não conseguem gerar um herdeiro são espancadas, estupradas ou mortas para que o marido possa casar com uma mulher mais “produtiva” (em outras palavras, que seja capaz de parir um varão).
Muitas vezes se fala que essa discriminação por gênero acabaria se a pobreza desses países diminuísse. Mas não é verdade que pobreza gera feminicídios. Na África e no Caribe, por exemplo, não há registros da prática de matar bebês meninas. E boa parte do infanticídio feminino em países como Índia e China acontece justamente em famílias com mais dinheiro, que têm acesso a ultrassom para verificar o sexo do feto e a clínicas onde possam fazer um aborto (fui informada que ultrassom é proibido na Índia, justamente para que pais descubram o sexo do feto). Aliás, abortar o sexo que não convém não é uma prática tão incomum nas nossas clínicas de fertilidade aqui no Brasil. Mas esse é um assunto pra lá de polêmico que merece um post só pra si.
Na China, onde durante muito tempo só se podia ter uma criança por casal, até dá pra entender (jamais justificar) por que os pais não iam querer que essa chance única gerasse um ser que traga tantas desvantagens. Mas, na Índia, onde não existe essa restrição, os motivos para não se querer meninas são que em geral elas não irão trabalhar e precisarão casar através de dote. Ambas são sociedades patriarcais, como a nossa, por sinal. E como todas as sociedades ocidentais. Ainda que a prática de matar meninas seja proibida por leis, ela persiste entre a população.
Antes que gente desprovida de inteligência venha dizer que estou me contradizendo por apoiar a legalização do aborto e condenar a prática do aborto quando o sexo do bebê não é o desejado, explico: o corpo é da mulher, e é ela que deve escolher quando quer ter o filho (lembrando que métodos que impedem a gravidez são sempre muito menos traumáticos que um aborto). Mas, nesses casos de aborto seletivo, por gênero, há uma imposição social para que a mulher aborte. Ou seja, é pra se pensar se ela realmente tem escolha. Assim como eu seria contra maridos, namorados ou pais que forçassem uma mulher a abortar, sou contra a imposição de uma sociedade para que seja feito o aborto seletivo. É totalmente diferente você querer reproduzir, e então abortar caso não saia o resultado desejado (um menino) de não querer reproduzir e engravidar sem querer, e aí abortar.
Em outros países não há assassinato de meninas, mas a situação é tão desfavorável às mulheres que trocar de sexo passa a ser uma solução. Na Albânia, há mulheres que fazem um voto de castidade para poder se vestir e viver como homens numa sociedade patriarcal. Só assim essas mulheres conseguem obter vantagens não cabíveis para mulheres, como recusar um casamento arranjado ou herdar as posses da família. Enfim, ter alguma liberdade.
No Afeganistão, muitas famílias que só têm filhas reservam a uma delas o papel de homem. Essa filha será vestida como menino (Bacha Posh) desde o início de sua vida. Desta forma, além de proporcionar status à família, que aos olhos da sociedade têm um garoto, esta menina vestida de menino protegerá suas irmãs. Ele usufruirá de uma vida proibida às mulheres, como ir à escola, viajar, praticar esportes, e ter um emprego. Só que todos esses privilégios serão válidos somente até que ele atinja a puberdade.
A partir daí, ele terá que se vestir e comportar como mulher. Inclusive, terá um casamento arranjado como as outras mulheres. Mas imagine a dificuldade que é ter de abrir mão de seus privilégios e voltar a ser o gênero discriminado. A maior parte dos Bacha Posh não quer retornar a ser mulher, porque viu como mulheres são tratadas. Um deles diz: “As pessoas usam palavras de baixo calão com as meninas. Gritam com elas nas ruas como se fossem bichos. Quando vejo isso, eu jamais penso em voltar a ser uma menina. Quando eu sou garoto, eles não falam comigo assim”.
O mesmo sistema patriarcal que abusa sexualmente de meninas e comete feminicídio também não é nenhuma garantia de felicidade pros meninos. Homens adultos são vítimas de mortes violentas em número muito maior que mulheres. A diferença é que quase sempre homens são mortos por outros homens. Portanto, o que precisa ser jogado na lata de lixo da história é o patriarcado, que insiste num modelo de masculinidade autoritário, violento, insensível, e nocivo para todo mundo, um modelo que só começou a ser questionado nas últimas décadas. Se um dia formos capazes de derrubar o sistema, meninas deixarão de ser mortas por serem meninas. E nenhuma mãe sentirá ser preciso falsificar o sexo de sua filha para protegê-la de abusos. Tomara que este dia chegue logo.




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