Verdades Imperfeitas
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Verdades Imperfeitas


Quando acabou de falar e o silêncio se interpôs entre eles, sentiu pela primeira vez uma estranha sensação de alivio. Era como se todo o peso que trazia no peito todos aqueles anos, finalmente tivesse se dissipado. Um peso tão repleto de medo e culpa, que agora já não existia mais.

E, bem, deles, ele não esperava nada. Também era uma sensação nova. Não saber o que esperar. Mas, o silêncio libertador inicial, deu lugar a outro, tão carregado de negações, que ali ele soube, que não haveria de ser diferente para ele.

Foi o pai que o mandou embora. Ele, como fazia todas as vezes, quando se indispunha com figura paterna, olhou para mãe, esperando, mais uma vez, que ela saísse em sua defesa.

Ela chorava. Um choro calado e tão profundo, como se alguém tivesse morrido. E, no final, não era sua morte o que ela chorava?

Não esperou a segunda ordem paterna.

- Seu “amigo” está te esperando? – A mãe perguntou, antes que ele abrisse a porta.

Nesses anos todos, o que mais doía sempre, era essa aspa na palavra amigo. Todas as vezes, tinha a sensação de que o interlocutor, faria com os dedinhos, uma aspa fictícia, o símbolo do preconceito, embutido em um simples gesto.

- Está. Meu – virou-se para eles e não resistiu,  desenhou com os dedos uma aspa imaginária – amigo, está lá fora.

Ainda esperou, qualquer coisa que não aconteceu, e partiu.

Entrou em silêncio no carro,

- Já vi que não foi nada bem.
- Alguma vez é? Sabe, quando tinha uns nove anos, eu jogava futebol. Jogava mesmo, fazia parte do time da escola e cheguei a participar de um intercolegial. E teve um jogo, final de campeonato.  Acho que foi a primeira vez que meu pai foi em jogo meu.

De repente a bola estava nos meus pés e eu sai igual louco, driblei, sei lá, uns quatro meninos e então, era só eu, a bola e o goleiro.  chutei e ... errei.  O engraçado, que até hoje essa lembrança vem em câmera lenta, exatamente como naquele momento. Lembro do grito de gooool, se dissolvendo na garganta coletiva dos que assistiam o jogo. E, principalmene, lembro dos meus pais e do olhar que encontrei. Um olhar diz muita coisa, não é? E aquele olhar disse tanto para mim, naquele momento...

- E...?
- Foi exatamente o olhar de hoje. Exatamente... E, sabe o que é mais trágico, nisso tudo? Aquele jogo, já estava perdido. Nós estávamos perdendo de 3 a 0 e faltava o quê? Uns 5 minutos pro final do tempo. Não importava, de verdade, se eu fizesse ou não aquele gol...
- Sabe do que você precisa? – perguntou Paulo, pegando uma garrafa térmica no fundo do carro. – Disso aqui.
- O que é isso?
- Chocolate quente... Sabe, querido, eu contei pros meus pais, quando completei 17 anos.  E, bem, você sabe como é... Mas, naquele dia, quando cruzei a porta, e fazia um frio do cão. Sabe do que senti mais falta? Do chocolate quente, que minha mãe trazia, todas as vezes que eu ficava triste. Durante todos aqueles anos, em que ela se recusou a me aceitar, todas as vezes em que eu ia visitá-los e saia me sentindo um merda... Foi disso aqui que senti falta.... -  Termina a frase quase num sussurro.

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Update: Texto inspirado neste post aqui ó: Luto e Negação da querida @LilahLeitora




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