GUEST POST: LEMBRANÇAS GERADAS POR UMA MÚSICA
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GUEST POST: LEMBRANÇAS GERADAS POR UMA MÚSICA


Camila ouviu a linda canção do Nenhum de Nós com o mesmo nome dela, canção clássica do final da década de 80, e um grande grito contra a violência doméstica. Isso lhe causou um turbilhão de emoções, que ela relata aqui. 

Camila, Camila - Nenhum de nós

Depois da última noite de festa
Chorando e esperando amanhecer, amanhecer
As coisas aconteciam com alguma explicação
Com alguma explicação

Depois da última noite de chuva
Chorando e esperando amanhecer, amanhecer
Às vezes peço a ele que vá embora
Que vá embora
Camila, Camila

Estou ouvindo agora a música, que foi lançada enquanto eu ainda era um bebê. De repente eu me sinto sentenciada pelo meu próprio nome, como se fosse algo que minha mãe soubesse, ou ainda algo que ela sentisse, foi ela que escolheu este nome pra mim. 
Eu lembro da minha mãe dizendo que tentou fugir quando eu nasci. Eu lembro de tê-la visto roxa, toda roxa e marcada a minha infância inteira. Olhos insanos os do meu pai quando o que ele fazia com a minha mãe não fazia sentido. 
Eu imagino ela ouvindo esta música comigo pequena no colo, ninando a Camila e pensando em fugir deste homem que é meu pai. Eu penso nisso tudo e dói, e dói ainda mais por que ela não conseguiu sair. Ela ficou. Ela não conseguiu escapar. Me dói ainda mais porque eu consegui. 
Eu tive um namorado abusivo, me separei dele quando as agressões começaram a sair do campo verbal para o campo físico. Quando ele começou a ficar com os mesmos olhos insanos. Eu me sentia dentro de um pesadelo, eu chorava a noite toda por noites seguidas, eu olhava para o céu pela janela do nosso quarto, e eu pensava que existia vida lá fora mas não existia mais dentro de mim. 
Eu dormia com medo que ele me machucasse, após algumas noites mais eu dormia com medo que ele me matasse. Eu ficava em casa sozinha torcendo pra que ele demorasse a chegar, eu saía e não tinha vontade de voltar. 
Quando eu era pequena eu lembro, eu ia para a escola e chorava quando chegava a hora de voltar pra casa. Aquela casa era um inferno, um inferno. Eu não acreditei quando vi que estava revivendo o mesmo inferno, a mesma sensação de pesadelo que eu tinha quando era criança. Eu estava vivendo tudo de novo.

Eu que tenho medo até de suas mãos
Mas o ódio cega e você não percebe
Mas o ódio cega

E eu que tenho medo até do seu olhar
Mas o ódio cega e você não percebe
Mas o ódio cega

Eu ficava acordada na sala, enquanto meu algoz dormia, eu me sentia caindo no fundo de um poço, rodando e girando, um poço sem luz, sem ter como sair, sem nada. Somente um pesadelo que eu não sabia como sair. Mas eu juntei forças e com auxílio dos amigos e especial de uma amiga maravilhosa que me convidou a morar com ela, eu saí. Eu consegui sair. Mas eu não tinha filhos, eu não dependia financeiramente dele, eu era livre, eu tinha amigos. 
Minha mãe não podia nada. Agora o refrão ecoa, e penso na minha pobre mãe, que não conseguiu sair, ela tinha filhos pequenos, era muito nova. Nós passamos tantas dificuldades que eu não tinha idade pra lembrar, meus pais ficavam sem refeição para que nós tivéssemos algo para comer. Eu lembro do olhar do meu pai quando as crises chegavam, eu tinha muito medo que ele a matasse, eu todo dia rezava pedindo que meu pai melhorasse, que ele não matasse a minha mãe.

A lembrança do silêncio
Daquelas tardes, daquelas tardes
Da vergonha do espelho
Naquelas marcas, naquelas marcas

Foi um pesadelo a minha infância, noites entrecortadas pelos gritos dos meus pais, em que eu e meu irmão saímos correndo pela rua na madrugada batendo na casa dos vizinhos pedindo ajuda. Lembro de um vizinho que da janela do seu prédio apontou uma arma para meu pai. 
Lembro da noite em que meu pai estava mais agressivo que o normal e expulsou minha mãe de casa aos berros no meio da madrugada, e voltou a dormir. 
No quarto também dormia a minha mais nova irmã, a caçula, com poucos meses. Eu acordada assistia a cena, os berros, a violência, a expulsão, e o medo todo que cortava o ar, o medo dentro de mim que minha mãe morresse. 
Minha mãe na rua, batendo de leve na janela da cozinha e pedindo aos sussurros que eu pegasse minha irmã e a tirasse do quarto, nós duas com medo do que podia acontecer. Eu tinha sete anos, era uma madrugada de inverno muito frio aqui no sul, eu entrei no quarto em silêncio e peguei no colo minha irmã enrolada em um cobertor, e saímos correndo de pés descalços pela rua. 
Eu lembro como se fosse ontem, o pânico e o horror nos nossos olhos, na noite escura e vazia, no inverno, no frio, na solidão, no silêncio, do chão duro e frio da calçada sob os pés, do vento cortante através da roupa, nós correndo pela rua pedindo ajuda. Eu queria que alguém nos ajudasse, mas eu não sabia como alguém podia nos ajudar. 
Foram anos assim até que meu pai fizesse um tratamento eficiente pra esquizofrenia que controlasse suas crises de agressividade, foram anos que ouvi minha mãe chorando em um dos quartos, por detrás da porta, no escuro das noites. Anos em que meu pai, paranoico, a perseguia. 
Meu deus, foram anos em que ela se sentia dentro de um pesadelo que não tinha fim, com três filhos, com dificuldade para alimentar os três, eu não consigo imaginar o que a minha mãe passou. Quanto mais eu lembro do que eu passei, mais eu só posso supor que o pesadelo que ela viveu não pode ser descrito, pobre da minha mãe, pobre da pequena Camila, do meu irmão, da minha irmã. Isso hoje é passado, mas foi um presente que durou toda a minha infância e que está vivo nos meus pensamentos.

Havia algo de insano
Naqueles olhos, olhos insanos
Os olhos que passavam o dia
A me vigiar, a me vigiar

Eu não pude acreditar que anos depois eu mesma encontrei um homem com o mesmo comportamento do meu pai. Eu não queria viver a mesma história novamente, entrei em depressão, mas consegui sair, e mesmo assim após um ano que nos separamos eu ainda sofro muito. 
E hoje descubro que a música "Camila, Camila", do Nenhum de Nós, fala sobre relacionamento abusivo. Essa transformação no olhar da letra realmente é a mais reveladora, olhos que te miram carinhosamente se transformam em olhos que você não reconhece mais, todo o amor se converte em um ódio do qual você é o alvo, e não faz sentido, nada faz sentido, e você continua a ser sugada para dentro do pesadelo. 
Eu me sentia como num filme, como se eu visse dois personagens atuando, não era eu que vivia aquilo, era um personagem. Todos cantavam essa música pra mim quando criança, eu sempre a achei muito melancólica. E agora tudo veio à tona, tudo que estava guardado, essa catarse de sentimentos e de lembranças, esse choro compulsivo enquanto imagino minha mãe com a Camilinha no colo tentando sair do seu pesadelo, ela ainda mais jovem e despreparada do que eu estava, com seus menos de vinte anos. 
Eu choro ainda mais pensando que ela nunca conseguiu sair, e me dou conta que eu tive a infelicidade de tornar esta música parte da minha biografia por duas vezes. Eu fui a filha da Camila, e me tornei essa Camila. Eu não sei quando a última Camila vai deixar de existir.

E eu que tinha apenas 17 anos
Baixava a minha cabeça pra tudo
Era assim que as coisas aconteciam
Era assim que eu via tudo acontecer




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