“QUE BOM QUE SEU PAI NÃO VIVEU PRA VER ISSO”
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“QUE BOM QUE SEU PAI NÃO VIVEU PRA VER ISSO”


Quando uma das minhas tias morreu, três ou cinco anos atrás, não lembro, mal tive tempo de lamentar a sua morte. No mesmo dia minha irma, que nos últimos tempos tinha mais contato com ela, me mandou um email que ela havia lhe mandado. Nesta mensagem, minha tia falava mal da minha mãe e de mim. De mim, ela dizia algo como “Lola está medonha de tão gorda. Ainda bem que seu pai morreu antes de vê-la assim”. Achei cruel da parte da minha irmã me enviar este email, e bem naquela hora. Afinal, ela poupou a minha mãe de saber o que minha tia “realmente pensava dela”. E também porque há todo um contexto: meus irmãos são bastante obcecados com o meu peso. Como muita gente, eles, pra não parecerem gordofóbicos, alegam que a preocupação é com a minha saúde, não com a minha aparência. O que é estranho, pois minha saúde sempre foi ótima. Eles não se conformam que minha saúde seja boa apesar da minha aparência. Acho que minha irmã tem se tocado que alguns comentários não ajudam, e parou de começar um papo ao telefone comigo com uma conversa do tipo:

- Você tá bem? Tem ido ao médico?

- Ahn, sim. Fui há um ano e meio fazer um papanicolau.

- Mas você fez todos os exames?

- Bom, os exames normais pra uma mulher de 35 anos. [minha idade na época]

- E aí? O que esses exames disseram?

- Que eu tô bem.

- Ah. Você precisa se cuidar, Lola.

Na realidade eu não conheço uma só gorda que não ouça observações constantes da família sobre a sua “saúde” ou, pros menos hipócritas, sobre sua aparência. Mulher gorda parece que é propriedade pública, e todo mundo se sente no direito de lhe dar dicas de dietas, recomendar cirurgia de redução de estômago, falar de exercícios, do método infalível que deu certo com a filha da prima da melhor amiga... Já vi casos até de mulheres que apalpam barriga, braços e bochechas de gordas. Propriedade pública mesmo! (bom, mulher de modo geral é tratada como propriedade pública, vide as grávidas. Mas entre mulheres gordas é pior).

Voltando a minha tia, pra ela meu amado pai só enxergaria a minha aparência, e se envergonharia de mim. O “assim” que minha tia ficou feliz por meu pai não ter visto não incluía eu estar feliz, trabalhando, estudando, ao lado de um homem que eu amo e que me ama. Só eu estar gorda. Duvido que minha tia escrevesse ou assinasse um manifesto anti-gordos como aquele que citei aqui. Mas, no fundo, ela pensava igual.

E pode ser, sim, que meu pai se envergonhasse da minha aparência. Minha família da parte de pai sempre teve um lado terrível nisso que se refere a quem não se enquadra num certo padrão físico/estético. Uma vez, quando eu tinha uns oito anos, fomos jantar num restaurante, e lá entrou o que parecia ser uma criança no colo da mãe. Mas sua cabeça, maior que o resto do corpo, era de adulto. Pronto. Foi o suficiente pro meu pai perder o apetite e querer sair dali. Essa foi a primeira vez que me dei conta dessa fobia dele, mas depois pude observar como ele se comportava perto de gente em cadeiras de rodas, sem um braço etc. Tanto que, quando essa minha tia começou a definhar devido à esclerose múltipla, meu pai parou de vê-la, porque ele sofria demais. Só se falavam por telefone.

Uma outra irmã do meu pai, uma tia com quem eu tinha mais contato, me tratava muito bem – enquanto eu era magra. Todas as vezes que nos víamos ela falava da minha aparência. Como ela tinha sido bailarina quando jovem, esse assunto era fundamental pra ela. Quando engordei, ela cortou relações comigo, provavelmente por uma série de fatores além da minha aparência. Ela não estava bem de saúde, e viria a falecer pouco depois. Mas ela era outra que não conseguia discutir (e muito menos ver) a condição da minha tia com esclerose múltipla. Tenho certeza que ela não quis mais me ver depois que meu peso voltou.

O que me espanta é que as pessoas em geral vêem a gordura como doença, mas não notam que fobia à gordura (ou a qualquer outra coisa) pode ser muito, muito ruim. É aquele negócio: eu não teria problema nenhum em ter um filho negro ou gay (que evidentemente não são doenças, defeitos, ou nada do gênero), mas detestaria ter um filho racista ou homofóbico.

Devo ser justa com a minha mãe. Há uns dois ou três anos, tivemos uma conversa franca sobre gordura, e eu disse pra ela que achava que ser gorda era meu peso normal, parte do meu biotipo desde a puberdade, e que eu estava cansada de tentar emagrecer e nunca me aceitar como sou. E ela, que sempre teve obsessão pelo seu peso e o dos outros, falou que iria também me aceitar como eu era, sem mais me pressionar a perder peso. Achei um sinal de amadurecimento, tanto dela quanto meu. Pena que esse amadurecimento leve quarenta anos pra chegar. E, pra algumas pessoas, não chegue nunca.





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