GUEST POST: COMPAIXÃO PELAS OUTRAS, NÃO POR MIM
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GUEST POST: COMPAIXÃO PELAS OUTRAS, NÃO POR MIM


M. é uma leitora muito querida. Eu só fiquei sabendo de tudo isso quando ela comprou meu livro, e me mandou um resumo da sua história. Aí eu pedi pra ela escrever mais.

Há cerca de um mês eu ia escrever um texto sobre minha cirurgia bariátrica. Enquanto eu escrevia o texto comecei a chorar muito. Não sabia como explicar por que eu tinha feito a cirurgia, por que eu era gorda, por que eu passei a vida toda me escondendo atrás de roupas grandes e da comida. Não sabia por que eu não confiava nas pessoas, não sabia por que eu me tratava mal, por que eu achava que qualquer homem só iria querer ter comigo uma noite apenas, e por que eu me submetia a isso. E enquanto eu escrevia, e tudo isso passava pela minha cabeça, depois de chorar muito tomei coragem e perguntei pra minha mãe: por que a gente não contou pra polícia?
Com 11 anos eu sofri abuso. Um amigo da família, de "confiança", às vezes dormia lá em casa. A gente morava num lugar isolado, então quando ele ia visitar, ficava por lá, mesmo. Mas à noite entrava no meu quarto e passava a mão em mim. Isso durou uns três meses. Era horrível, eu demorava a entender o que estava acontecendo, mas tinha medo de gritar, de fazer qualquer coisa, achava que a culpa era minha. Achava que eu estava provocando esse comportamento. Achava que ninguém iria acreditar em mim ou ficar do meu lado.
Uma vez, um ano antes, eu ouvi minha tia falando com minha mãe: você não pode deixar sua filha andar por aí desse jeito, ela não se comporta, esses pedreiros (a casa estava em reforma) ficam olhando pra ela, porque ela não usa sutiã, não tem modos.
Eu nem entendi o que ela quis dizer com isso. Eu não ligava se eles eram pedreiros, eles tinham cimento, pá e um carrinho de mão, e eu queria brincar. Mas aparentemente eu tinha que ter medo deles. Talvez tivesse que ter tido, mesmo. Um deles foi esse que ficou "amigo" da família, e fez isso comigo.
Tadinha da minha mãe, ficou arrasada com a minha pergunta, começou a chorar e pediu desculpas, ela também não sabia o que fazer. Tinha medo de me expor, de alguém questionar por que ele estava lá, por que eu demorei a contar. Ela tinha medo que alguém falasse que eu que provoquei.
Claro que era bem possível isso acontecer. Até hoje acontece. Nós morávamos no nordeste, muito machismo, ninguém falava dessas coisas, não tinha internet pra ajudar, pra explicar. Eu sou filha de mãe solteira, então não tinha um pai pra ajudar na decisão. Não porque só um homem poderia tomar a decisão, mas teria sido bom alguém pra ajudá-la, um companheiro. Ela só tinha minha avó. Que eu achei que tinha ficado decepcionada comigo, com vergonha. Mas depois dessa conversa, minha mãe disse que ela ficou arrasada, deprimida, porque ficava comigo em casa o dia todo e não tinha percebido como eu estava.
Nunca gostei de associar meus problemas de relacionamento, ou meu problema de ansiedade com a comida a isso. Eu achava que era frescura minha, que isso não tinha sido tão ruim, afinal, ele nunca me bateu, nunca me agarrou, ele só entrava no quarto e passava a mão em mim. Então eu achava que na verdade eu era mesmo preguiçosa e não tinha autocontrole, que eu estava arrumando desculpas. Fui a psicólogos duas vezes na minha vida. Nunca contei sobre o ocorrido. Eu tinha muito medo de ouvir alguém dizer: ah, isso não tem nada a ver, já passou muito tempo, essas coisas não causam traumas.
Nem eu levava a sério o que tinha me acontecido, até chegar no blog e ler tantos relatos que me fizeram chorar, me fizeram pensar: por que eu tinha tanta compaixão por essas moças, mas não tinha por mim?
A princípio minha decisão de fazer a cirurgia foi porque eu não aguentava mais ser gorda. Sério. 
Odiava sair na rua e as pessoas gritarem coisas maldosas pra mim. Odiava ter que encarar o olhar de desdém de vendedor de loja, de ter uma dor de cabeça, chegar no médico e ele falar que era por que eu estava gorda.
Aí as pessoas falam que dietas e exercício resolvem, mas eu sabia que não era isso. Eu precisava comer. Precisava preencher alguma coisa dentro de mim. Eu não comia porque gostava. Quantas milhares de vezes terminei de comer chorando? Minha relação com a comida não era de prazer, era de punição.
A cirurgia foi a solução que eu encontrei pro meu problema com a obesidade. Hoje, 34 quilos mais magra, me sinto bem comigo mesma. Além da saúde ter melhorado, não tenho mais vergonha de sair de casa nem de expor o que eu penso. Porque não importam nossos problemas internos, as pessoas são cruéis com você porque você não tem a aparência adequada. Ninguém quer saber de verdade a sua dor, elas só querem que você não as incomode com sua "feiura". E se você for "feia" e tiver opinião, aí tá pedindo pra virar saco de pancada.
A cirurgia foi fácil. Um mês na dieta líquida, só sopas, caldos, sucos etc. Depois a gente vira bebêzinho de novo, numa papinha mais sólida, mastigando com cuidado pra não colocar tudo pra fora. Não senti dor nenhuma vez; o remédio pra dor foi comprado e fechado ficou. Vomitei algumas dezenas de vezes, mas nada desesperador. Algumas pessoas até me procuraram pra pedir orientação sobre a cirurgia e fizeram também. Eu recomendo. Não é fácil, exige muita coisa, mas pra quem precisa, ajuda. Porque também não é nada fácil ser gorda nesse mundo, muito menos mulher gorda.
O fato é que eu passei seis meses me preparando pra cirurgia, mas a parte mais difícil foi contar isso aqui. A gente revive aquele tempo, aquele medo, volta tudo. Ao mesmo tempo liberta. Hoje com 27 anos, ainda dói quando eu lembro, dói não ter denunciado o cara, dói imaginar o sofrimento da minha mãe, dói ter vivido tanto tempo com essa culpa. Que no fim nem era minha.




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