"COMO FAÇO PARA VIVER O QUE ACREDITO?"
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"COMO FAÇO PARA VIVER O QUE ACREDITO?"


Y. me enviou este relato que eu não tive nem tempo de responder: 

Eu nasci em uma cidade do interior do RS, a primeira filha de um casal que me amava mas tinha um relacionamento complicado. Não sei dizer se a minha infância foi feliz ou triste, porque tive tudo que uma criança deve ter, comida boa, brinquedos, carinho e amor, mas outra parte da minha infância foi muito complicada e me influencia até hoje. 
Quando eu nasci o casamento dos meus pais já estava arruinado, só que eles ainda não sabiam, e ficaram juntos para cuidar de mim e do meu irmão que veio dois anos depois. Minha mãe é uma pessoa maravilhosa, mas tinha muito medo de tudo, principalmente do meu pai, não que ele batesse nela, mas que fizesse algo que considero igualmente grave, a agressão psicológica, a chantagem emocional. Lembro que minha mãe sempre falava baixo com ele, defendia eu e meu irmão quando meu pai queria nos bater, não contestava nada. 
Eu acredito que meu pai é uma pessoa muito boa, e me ama demais, só não sabe o que fazer com esse amor e tem problemas psicológicos graves. Ele era uma pessoa muito nervosa, qualquer coisa que o contrariasse era o suficiente para bater em mim e no meu irmão. Ele mudava seu comportamento de uma hora para outra e podia ser incrivelmente bom mas também muito mau. Não lembro dele em casa, ele nunca ficava em casa conosco de noite, era minha mãe que sozinha cuidava de mim e meu irmão. Desde que eu nasci ele não dormiu mais com a minha mãe, dormia todas as noites (que voltava pra casa) num colchão na sala, sempre. Nunca vi meus pais de mãos dadas, nem fazerem carinho ou se beijarem.
Meu pai era extremamente machista, não deixava minha mãe sequer olhar para o lado que já a acusava de estar interessada em outro ou traindo ele, sendo que ele nunca dormia em casa. Ele podia, minha mãe não. Ele a acusava na minha frente, ou na rua, em qualquer lugar, e minha mãe se limitava a ficar em silêncio. 
Meu pai também preenchia todas as outras características de um verdadeiro machista, a unica coisa que ele era diferente era na hora do dinheiro. Era minha mãe que nos sustentava, só ela, meu pai não ajudava com um real, ele trabalhava em um negócio que não ia para frente e o que ganhava gastava em outras coisas, cerveja principalmente. A principal briga deles era o dinheiro, meu pai gastava demais, pegava o dinheiro da minha mãe e ia em festas, bebia, comprava coisa desnecessárias e sabe-se lá mais o quê, inclusive ele fez o nome da minha mãe ir para o Serasa várias vezes. 
Minha maior lembrança em relação ao dinheiro foi quando ele pediu emprestado para mim, que na época tinha 7 anos, meus 15 reais. Eu achava aquilo muito dinheiro, levei anos pra conseguir, mas ele me disse que devolveria 20, e eu emprestei. Ele nunca mais devolveu.
Eles decidiram se separar quando eu tinha 8 anos, mas meu pai, porque não tinha dinheiro e fazia suas chantagens, continuou morando em casa. Na verdade tudo ficou igual, eles só tiraram as alianças e diziam ser separados. Minha mãe continuou fazendo o que sempre fazia, nunca saía, nunca ficava com ninguém, e o comportamento ciumento do meu pai também continuou o mesmo. 
Certo dia, quando eu já tinha meus 13 anos, minha mãe decidiu tomar uma atitude: ir a uma festa pela primeira vez desde o casamento. Iria se divertir. Não foi o que aconteceu. Nessa festa meu pai apareceu lá, bebeu muito, ficava de olho na minha mãe, até que atingiu um nível que ele nunca tinha atingido, ele queria pegar minha mãe, prefiro não pensar para quê. Ela fugiu desesperada para a casa de uma amiga que a ajudou, se escondeu lá e ligou para casa aonde estávamos eu, meu irmão e a babá. 
Ela avisou a babá do que estava acontecendo e pediu para que trancássemos toda a casa. A babá me contou o que estava acontecendo, e falamos uma parte para o meu irmão. O que minha mãe mais temia aconteceu. Pouco depois meu pai começou a tocar a campainha e a bater no portão da nossa casa, gritava pela minha mãe, a acusava de ter transado com a cidade inteira, citava nomes dos nossos vizinhos, entre outras coisas. 
Ficamos escondidos olhando pelo canto da janela o que estava acontecendo. Até que ele conseguiu arrombar o portão, e veio para o pátio, batia em todas as portas, chamava minha mãe. Tentou então arrombar nossa porta. Assustada, a babá pediu para que nos escondêssemos e foi lá falar com ele, abriu um pouco a porta e avisou que minha mãe não estava ali. Meu pai berrou que iria ficar ali até minha mãe voltar.
Meu tio apareceu, tentou por horas carregar meu pai pra fora, sem sucesso. Finalmente ele conseguiu empurrar meu pai dentro do carro e partiram. Abrimos a porta aliviados, ligamos para a mãe, choramos. Mas não tinha acabado. Meu tio e meus avós não conseguiram segurar meu pai em casa, ele quebrou muitas coisas e pegou uma lasca de um espelho, colocou na garganta e falou que ia se matar se não deixassem ele sair. Então deixaram. Começou tudo de novo, o pesadelo se repetia.
Meus avós e meu tio voltaram para tentar levar meu pai de novo, e com ajuda de outra pessoa conseguiram levá-lo embora. Dessa vez foram direto para o hospital. Ele ficou internado por uma semana. Eu tive que visitá-lo, fizeram que eu abraçasse aquele homem que para mim não era mais o meu pai. 
Para evitar esse episódio de novo, eu, minha mãe e meu irmão mudamos de cidade, viemos para uma cidade vizinha e tentamos reconstruir nossas vidas, mas eu nunca mais me recuperei. Tive problemas na escola, faltava demais, era muito tímida e sem amigos, cheguei a rodar por não ir às aulas, embora minhas notas fossem altas. Entrei em depressão, parei de estudar, voltei de novo, parei e assim em diante até acabar o ensino médio, sem amigos, sem formatura. Só consegui acabar o ensino médio porque conheci um menino muito especial, começamos a namorar e ele me ajudou, me levava nos lugares, fazia eu sair de casa, tentava me fazer viver. E eu vivia, mas por ele, não por mim. 
Depois de quatro anos de namoro o relacionamento não aguentou mais. Eu era instável, depressiva, e o amor havia virado amizade. Conversamos e decidimos acabar. Não me arrependo disso. Continuamos muito amigos, mas como era ele quem fazia que eu me movesse, sem ele eu parei. Entrei em depressão novamente, não conseguia sair de casa, me achava terrivelmente feia, me odiava. 
Sobre meu pai, depois daquele episódio ele entrou em depressão, emagreceu demais, ficou com uma barba gigante, e ficou morando com meus avós. Eu o amo, sei que ele me ama, e aos poucos consegui voltar a vê-lo como pai novamente, mas sabia que só dava certo e era legal porque ele não morava com a gente, porque ele não tinha responsabilidades, não tinha gastos, nada, então não tinha motivos para se irritar. Não sentia falta dele, na verdade eu ficava até feliz por não tê-lo mais por perto. 
Hoje não visito mais meu pai, mas conversamos por telefone, eu sinto o amor dele por mim e parece arrependido, mas nunca pagou pensão, o que deveria ser uma responsabilidade dele como pai, e minha mãe tem muitas dificuldades psicológicas e financeiras para nos sustentar.
Não saio de casa, meu temperamento ficou igual ao do meu pai, me tornei parecida com a pessoa que jurei que não seria igual. Conheci o feminismo, me considero feminista, mas meu interior, meu psicológico, ainda não é.
Como podem dizer que o machismo não existe, que não destrói vidas se foi isso que mais me prejudicou desde criança? Eu sei que preciso confiar em mim, mas como irei tirar esse machismo de dentro de mim? Eu nem percebo que tenho, se me pedirem qualquer opinião ela é totalmente feminista, mas não vivo isso, continuo com vergonha de mim, com receio/medo de homens, com medo de aceitar sair com alguém e ser chamada de "fácil" e tudo aquilo que falam. Como faço para viver o que acredito?

Minha resposta: Eu só consigo pensar em terapia, querida Y. Você tem que fazer, porque será difícil sair dessa sozinha. Você já viu que nem todos os homens são iguais ao seu pai. Já teve o exemplo do seu ex-namorado. Mas os seus problemas estão muito além de apenas ter receio de homens. Como vc mesma disse, vc precisa confiar em vc. Esta confiança te foi tirada na infância. Vá atrás dela.




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