"POR QUE AINDA TORÇO O NARIZ PRO FEMINISMO"
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"POR QUE AINDA TORÇO O NARIZ PRO FEMINISMO"


A T. enviou um email (longo, que eu tive que reduzir) dizendo que "tá na hora de falarmos porque ainda torcemos o nariz pro feminismo". A minha resposta (embaixo) eu escrevi faz um tempinho.

Lola, eu tenho algumas críticas ao feminismo, espero que você consiga me esclarecer. Te admiro muito e adoro seus textos!
Sou mulher, hétero, balzaca, não sou casada e não tenho filhos. 
Nunca sonhei com o príncipe encantado, e sempre disse que casaria quando (e se) encontrasse um homem com os valores, visão de mundo, e ideia de relacionamento parecidos com os meus. Bom, nenhum que eu namorei chegou lá. Aprendi e desaprendi com eles. 
Também nunca quis ter um bebê. Quando amadureci percebi como é ruim a sociedade valorizar tanto a mulher por ser mãe. Explico, na bíblia nosso papel é trazer vida ao mundo, e parece que isso perpetuou de uma forma inexplicável, ouço coisas do tipo “mulheres se transformam pra melhor depois de ter filhos”, e sinceramente não acredito que um ser humano podre passe a ser incrível por parir. Também sou julgada de egoísta, e acho que egoísmo é colocar um filho no mundo indiscriminadamente. Um dia talvez eu adote uma criança.
Lola, entendo o sexo livre, mas não curto poligamia, não adianta, não me sinto à vontade, e não é nem repressão. Aí pra ser feminista não posso querer uma relação com um só homem, relação com fidelidade, baseada na igualdade de direitos e deveres, e no amor? 
Não consigo sentir amor por dois caras ao mesmo tempo, e por isso sou julgada como reprimida? Eu gosto de homens, e de um por vez, não vou virar poligâmica nem lésbica.
Ouço muito a teoria que no fundo todo mundo é gay ou bissexual, só não se descobriu. Eu me descobri, descobri meu clitóris, aprendi a me dar prazer sozinha e com o parceiro, descobri o que gosto e o que me atrai, gosto de fazer amor, pois não consigo separar amor de sexo, e adoraria ser respeitada e amada do jeitinho que sou. Enfatizando que aceito perfeitamente a liberdade. Luto por uma sociedade com mais tolerância, amor, gentileza, paz, onde todas as relações sejam baseadas em respeito mútuo, com direitos e deveres iguais.
Aí quando o movimento levanta bandeira de ódio aos homens, a todos, e não aos podres que profetizam o machismo e se pautam na bandeira do patriarcado, me sinto não representada. Desculpa Lola, é que alguns sites ficam retratando o feminismo como uma apologia ao amor livre, e à poligamia. Entendo o total apoio ao amor livre no movimento, e também à homossexualidade. Mas poucos e raros discursos feministas levantam a bandeira da mulher hétero que quer respeito, amor e igualdade, numa relação monogâmica. 
Liberdade não é libertinagem, pelo contrário, requer muita responsabilidade. Creio sinceramente que provocações, ofensas, e frases de ódio piorem o quadro de violência contra a mulher. Respeito é uma via de mão dupla, e se consegue com exemplo e esclarecimento. Muitas pessoas não aderem ao movimento por isso, porque não se sentem representadas quando a coisa descamba pro ódio. É contra a violência, não é?!
O machismo fica onde? Ele só ocorre contra os gays e as mulheres poligâmicas? Só ocorre contra transsexuais e bissexuais e transgêneros? Nem os homens héteros que apoiam o feminismo são bem vistos no movimento. Se não dermos espaço para que eles aprendam e se recuperem, como pretendemos acabar com a violência contra a mulher? Qual o espaço pra recuperar o homem agressor, se não for através de homens mais conscientes? E participar do movimento não seria uma ótima forma de se conscientizarem?
Eu falo muito do feminismo com as minhas amigas, inclusive metade delas é feminista, só que elas não são ativistas porque não se sentem representadas nas marchas, pelo contrário, se sentem discriminadas quando se assumem heterossexuais e monogâmicas.

Minha resposta: T., entendo sua angústia. Já recebi outras mensagens de mulheres que tinham tudo pra ser feministas, que queriam se assumir feministas, que entraram em algum grupo feminista, e não foram bem recebidas. Infelizmente, isso acontece. Feministas são humanas, estamos longe da perfeição, e em todo grupo é frequente algumas pessoas serem excluídas. 
Em todo lugar há panelinhas. Por mais que a gente tenha um interesse em comum -- o feminismo --, claro que a gente vai se identificar mais com algumas pessoas, menos com outras. Estamos falando de grupos feministas, não do feminismo em geral, que é um movimento revolucionário (e não uma turma pra gente fazer amizades, embora não haja nada de errado em querer fazer amizades em grupos de luta). 
Assim como no "mundo real", fora do feminismo, somos cobradas como mulheres pra fazer ou deixar de fazer mil e uma coisas (ser mãe, ser bonita, ser hétero, casar etc), em alguns grupos feministas também há cobranças. Eu pessoalmente acho que não deveria haver. Quero um feminismo inclusivo, em que todo mundo possa se declarar feminista e lutar para mudar o mundo. 
Já recebi vários comentários aqui no blog dizendo que eu não posso ser feminista, ou que sou menos feminista, ou que sou pseudofeminista, ou que sou feminista entre aspas, ou que presto um desserviço ao feminismo (enquanto que, pra reaças e mascus, eu sou a super feminazi radical misândrica por excelência -- sinal de que, se você entrou no feminismo pra agradar alguém, melhor sair rapidinho). As razões, segundo essxs comentaristas, pra eu não ser tão feminista como "deveria ser" incluem ser hétero, ser monogâmica, ser classe média. Uma vez alguém disse até que eu não posso ser feminista porque já usei corretivo pras olheiras!
E aí, o que vou fazer? Vou fechar o blog e dizer adeus pra uma identidade de luta que abracei aos oito anos de idade (algumas pessoas também dizem que não é possível ser feminista quando criança, mas essa é outra história) porque alguém decidiu confiscar minha carteirinha? O bom é que não existe carteirinha. Não existe uma comissão que se reúne pra determinar quem é ou não feminista. O que tem é bastante gente arrogante e sem noção achando que pode tomar essas decisões. 
Sabe, não existe uma competição pra ver quem é mais feminista. Não é que a gente recebe pontos se for uma feminista assim ou assado, e alcançando uma certa pontuação, a gente ganha, sei lá, um sutiã queimado. Então feminista que fica fiscalizando o feminismo alheio não deixa de ser feminista (quem sou eu pra cassar carteirinha que sequer existe?), mas, na minha humilde opinião, está perdendo tempo. Criticar é uma coisa, e todo mundo está sujeito a críticas. Mas colocar numa listinha e perseguir quem discorda de vc é bem diferente. E, lamentavelmente, eu vejo muita feminista de várias correntes fazendo isso.
Agora, uma coisa que os feminismos dificilmente vão fazer é celebrar o que já é celebrado e imposto. Por exemplo, a heterossexualidade e a monogamia. Isso já é o que a sociedade espera da gente, então não faz sentido gritar "Viva a monogamia! Yay, orgulho hétero!". O mesmo com, sei lá, maquiagem. Como o mundo impõe que a gente "se produza" (tem milhares de sites de "stars without makeup" pra provar que maquiagem é uma imposição), não vale a pena pro feminismo saudar uma indústria bilionária. O que não quer dizer que uma mulher que adora maquiagem não possa ser feminista.
As escolhas pessoais que fazemos podem não ser tão pessoais assim (até que ponto realmente temos escolhas? E quem tem? Todxs nós?), e sim, o pessoal é político, mas estamos aqui pra derrubar um sistema (pode chamar de patriarcado). Pra mudar o mundo é preciso mudar as pessoas dentro deste mundo, mas focar pessoas, e não o alvo maior, não é a solução. Individualizar um problema é algo bem burguês. 
Meu conselho é: não torça o nariz pro feminismo. Se algum grupo te desprezou ou destratou, existem outros. E você nem precisa fazer parte de um grupo pra ser feminista. Você pode ser feminista no seu dia a dia, no seu trato com as pessoas, nas suas discussões. Tudo isso é muito válido. 




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