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"SER EU É DIFÍCIL", DIZ MENINA DE 13 ANOS
Recebi este relato desesperado(r):
"Meu nome é L. Tenho 13 anos, já tentei contar minha história para algumas pessoas, mas elas apenas dizem que eu quero chamar a atenção. Meus pais me repreendem muito. Eles simplesmente não entendem como eu sou, não entendem que não sou perfeita. Meu pai trabalha embarcado, e os quinze dias que ele está fora são uma maravilha, ninguém nem olha pra mim dentro de casa. Mas quando ele chega minha mãe quer dar uma de atenciosa, o que me dá raiva. Ela me espanca, frequentemente com cabides de madeira, cintos, vassouras, chinelos, e me chama de várias coisas, como inútil, imprestável, ridícula, arrogante, retardada, doente, lixo... O pior é que meu irmão me odeia. Ele me odeia mesmo. Ele me bate, me chuta e manda eu fazer as coisas dele. Minha mãe finge que não vê isso. Um dia li em algum lugar que os animais são espancados antes de serem abatidos e resolvi virar vegetariana. Quando me recusei a comer carne no almoço, eles começaram a gritar, falando que eu não ia chegar a lugar nenhum com essa encenação, então eu voltei a comer. O pior é que se eu esquecer de lavar um copo, minha mãe faz a cabeça do meu pai e ele me espanca. Tenho várias marcas por conta disso.
Já tentei me matar com remédios uma vez, mas não deu certo. Quando eles descobriram, foi mais uma surra e não falaram mais do assunto. Eles dizem que eu sou a derrota da família, que ninguém gosta de mim por isso. Não sou bonita, nem magra, e a única pessoa em que eu tinha conforto era a minha avó, ela me entendia e me fazia carinho quando eles me batiam, mas ela morreu e a minha mãe me culpa, por eu ter contado os meus problemas para ela. Já tentei cortar os pulsos também, não deu certo. Desculpe a palavra, mas minha vida é muito fodida. Não sei mais o que eu faço. Não tenho namorado nem amigos. Nem nada. Choro todas as noites antes de dormir, mas vou sorrindo para a escola. Ser eu é dificil. Quero me matar."
Minha resposta: Sinto muitíssimo por tudo isso que vc está passando. Sempre me revolto ao ver que pessoas que deveriam amar e cuidar bem de seus filhos os maltratam. Pais têm que tornar a vida de crianças e adolescentes mais fácil, não mais difícil. Eu não entendo essa mentalidade de que é preciso bater pra educar, de que se deve espancar os filhos pra que eles aprendam. Aprendam o quê? Que os pais são totalmente despreparados? Que eles não têm um pingo de criatividade, e que só sabem tentar resolver conflitos através da violência? Sério mesmo que é isso que os pais querem ensinar aos filhos, que violência é algo bom e justificável? Seu irmão, pelo jeito, já aprendeu isso. Assim como ele bate em vc, ele muito provavelmente vai bater na mulher e nos filhos quando formar sua família, a tal "família tradicional" que os conservadores tanto querem salvar (salvar do quê, né?). E assim se perpetua a violência. Não por coincidência, os conservadores são os que mais defendem as tais "palmadas educativas". Está na bíblia, dizem eles. E tudo isso baseado num conceito de propriedade privada absurdo, de que só porque os filhos "são deles", eles podem fazer o que quiserem. E é aquele negócio: já que bater é tão bacana, já que funciona tão bem, já que é tão eficaz pra criar ótimos cidadãos, por que permitir que apenas pais e membros da família batam nas crianças e adolescentes? Vamos deixar que todo mundo bata! Estranhos na rua, amigos dos pais, professorxs -- vamos todos bater nas pessoinhas em formação! Porque aí sim o mundo ficará melhor, mais pacífico! Perdão pelo sarcasmo, mas fico indignada com essas coisas. Todo o modo como crianças e adolescentes são tratadas na nossa sociedade me parece errado. Há toda uma hierarquia ditatorial nas famílias que não permite que muitas crianças (e principalmente meninas, porque obviamente há o recorte de gênero também, como pode ser visto na sua história) não tenham voz. Num livro lindo e triste da Toni Morrison, O Olho Mais Azul, a narradora, uma menina negra de 9 anos, descreve como é o relacionamento entre crianças e adultos na família: “Os adultos não falam conosco -– eles nos dão instruções. Eles dão ordens sem dar informação. Quando tropeçamos e caímos eles olham rapidamente pra gente; se nos cortamos ou nos machucamos eles perguntam se somos loucas. Quando ficamos resfriadas, eles balançam a cabeça em reprovação por nossa falta de consideração. Como, eles nos perguntam, vocês querem que qualquer um faça alguma coisa quando vocês todas estão doentes? Não podemos responder”. E ela não está falando da família disfuncional do romance! É um bom resumo de como muitos pais veem os filhos como problemas, obstáculos.
O que eu quero dizer é que vc não está sozinha, L. Pode acreditar que há milhões de meninas da sua idade na mesma situação. Mas a maior parte sobrevive, L., então nada de pensar em se matar, tá bom? Por favor, tire isso da sua cabeça. Vc provavelmente está passando pelo pior período da sua vida. De toda a sua vida que, se vc permitir, vai chegar até os 80, 90 anos. Só que ela não vai ser assim f*dida pra sempre. Ela melhora. É que quando a gente é jovem e dependente dos pais (de péssimos pais, como os seus), não temos liberdade nem muitas escolhas. Mas, já já, vc poderá fazer boa parte das suas escolhas. Amigos e namorados aparecerão com o tempo, vc vai ver. Não tenha pressa. Não tente contar sua história pra muita gente, porque a maioria vê meninas de 13 anos como seres inferiores que estão de mimimi, como se a vida que vc leva fosse um mar de rosas. Mas vc não pode continuar apanhando, L. Isso não é permitido por lei. Existe um Estatuto da Criança e Adolescente, que vc deve ler para saber quais são seus direitos como cidadã. O Brasil, assim como tantos países em desenvolvimento, é um lugar que não gosta de criança, e muito menos de adolescente. Chamamos todos de "menor de idade", e vemos adolescentes como inimigos perigosos. A cada caso de adolescente que mata alguém, vociferamos para que a maioridade penal caia para 16 anos. E, óbvio, vamos querer que esta mesma maioridade caia para 14, 10, 8... Se uma criança de 6 anos cometer um crime, vamos querer puni-la com as leis dos adultos também. Porque a intenção de quem pede a redução da maioridade penal não é reabilitar ninguém. É simplesmente punir. E eu fico ainda mais triste quando vejo que pessoas ligadas a movimentos sociais, como feministas, adotam esse discurso punitivista, mas essa é outra história. Muito mais adolescentes são mortos neste país do que matam. Só que a gente se comporta como se eles, vocês, fossem o problema. A gente vê uma comoção incrível pra reduzir a maioridade penal, mas só defensores de direitos humanos (que são detestados pela turba) falam em defender adolescentes. Por mais que nosso país tenha uma infra-estrutura muito ruim para lidar com esses graves problemas sociais, vc não deve aceitar tudo calada. Há um telefone para denúncias, o número 100 (e o Disque Denúncia 181, se vc é de SP). Então ligue e denuncie. Sobre o seu irmão, não sei se ele também é adolescente, suponho que seja, mas, de qualquer jeito, ele não pode continuar batendo em vc. A Lei Maria da Penha também vê violência de irmãos como violência doméstica. Peço para que vc não se renda, L. LUTE. Vale a pena lutar.
UPDATE! Email recebido da L. em 4/9: "Eu conversei com os meus pais e eles concordaram que a minha vida seria bem melhor se eles me ajudassem em vez de me baterem. Graças a Deus nem precisei utilizar os recursos que você me disponibilizou, mas agora minha vida está melhorando. Quando sua resposta veio, me senti acolhida, respeitada e feliz. Pelo menos uma pessoa me entendia. Você. Então, tomei coragem de dizer que eu estava me sentindo acuada com a minha própria vida, não estava legal e estava sem vida. Com a sua ajuda, consegui conversar com os meus pais e estamos em fase de transição. Muito obrigada. E me senti muito feliz porque você publicou meu desabafo. Obrigada de novo".Muito obrigada pelo retorno, L.! São coisas assim que me fazem continuar com o blog.
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