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A GENTE QUER MESMO ESSA NORMALIDADE?
Um leitor resumiu bem meu texto da semana passada, que comentava o ótimo artigo de Lennard J. Davis, “Construindo a Normalidade”: “Oh meu Deus! A normalidade foi inventada por pessoas racistas! É tão engraçado quando a gente lê coisas assim... Parece que a gente se dá conta de que sempre soube disso mas não se tocou porque ninguém falou antes”. Pois é, eu também me senti assim ao ler o texto de Davis pela primeira vez. Não sei se por que ironia em Lolita foi tema da minha tese de mestrado, mas sempre que penso em normalidade me vem à mente um monólogo brilhante que não existe no romance de Vladimir Nabokov, apenas no filme de Stanley Kubrick (de 1962; nem procure esse trecho no dramalhão Lolita de 98 de Adrian Lyne, que é sério demais pra essas coisas). Lolita não é um romance “normal”, já que fala de um tema tenebroso, pedofilia, mas a gente se pega rindo ao ouvir as estripulias verbais do narrador e protagonista Humbert Humbert, que baba pela ninfeta Lolita (e, aproveitando que descobrimos que palavras como normal e norma só passaram a fazer parte das línguas europeias em 1840, termos como ninfeta e lolita foram criações de Nabokov, em 1955). Mas Humbert faz mais do que babar - ele se casa com Charlotte, a mãe de Lolita, apenas para ficar perto do seu objeto de desejo. Ainda na lua de mel, Charlotte avisa que vai mandar aquela pré-adolescente insuportável prum colégio interno. Charlotte convenientemente morre num trágico acidente, e o resto do livro segue com Humbert passeando (ou fugindo?) com Lolita pelos Estados Unidos. Um outro pedófilo, Quilty, que eventualmente vai “roubar” Lolita de Humbert, se encontra sem querer com ele num hotel. Humbert está fingindo ser o pai de Lolita, e Quilty, no filme de Kubrick, finge ser um policial. Ele saca na hora que Humbert não é o pai da menina. E aí ele diz (minha tradução, muito pobre, sorry):“Não pude deixar de notar quando você se registrou aqui hoje à noite. É parte do meu trabalho. Eu notei o seu rosto, e eu disse a mim mesmo quando te vi, 'Este é um cara com o rosto mais normal que eu já vi na vida'. Porque eu sou um cara normal e seria ótimo se dois caras normais como nós pudéssemos nos sentar e - falar sobre os assuntos do mundo, você sabe, de uma maneira normal”.A ironia é que não há nada de normal nesses dois. Ambos são pedófilos. O pior é que Humbert passa o livro inteiro tentando convencer a nós, senhores e senhoras do júri (como ele nos chama, para tentar nos cativar), que é normal um sujeito de meia-idade estar sexualmente atraído por uma menina de 12 ou 13. Ele menciona os gregos e grandes figuras literárias como Dante, Petrarca e Poe para defender seu caso. Quilty é bem menos hipócrita e parece não querer convencer ninguém. Seus únicos propósitos são atormentar Humbert e conquistar Lolita. A ironia de Kubrick, com ênfase na palavra normal, salta aos olhos. Nesse trecho, pelo menos, ele aperfeiçoa a prosa já perfeita de Nabokov. Essa busca pela normalidade também me lembra um outro filme que adoro, Trainspotting (1996, do diretor Danny Boyle, agora na crista da onda por causa de Quem Quer Ser um Milionário?, que concorre a dez Oscars). O protagonista, intepretado por Ewan McGregor, abre a trama com um monólogo da “escolha da vida”, que em inglês, choose life, remete à questão do aborto. Embora ele nunca use a palavra normal, fica claro que este viciado em heroína associa normalidade a consumo. No final da história, ele para de se drogar, mas também engana seus amigos e rouba dinheiro. Seu último monólogo é este, que se refere ao primeiro: “A verdade é que sou uma pessoa ruim, mas isso vai mudar, eu vou mudar. Esta é a última vez que faço esse tipo de coisa. Eu vou ficar limpo e seguir em frente, me endireitar e escolher a vida. Já estou ansioso com o que virá. Serei que nem você: o emprego, a família, a porcaria de TV grande, a máquina de lavar, o carro, o CD e abridor de lata elétrico, boa saúde, colesterol baixo, seguro odontológico, hipoteca, primeira casa, roupa casual, malas, terno, faça você mesmo, game shows, comida rápida, crianças, passeios no parque, horário padrão, bom no golfe, lavar o carro, escolha de suéter, Natal em família, aposentadoria, isenção de impostos, limpar o esgoto, se sair bem, olhar adiante - pro dia em que morrerei”. (Fique com a versão original, mais poética: “The truth is that I'm a bad person, but that's going to change, I'm going to change. This is the last of this sort of thing. I'm cleaning up and I'm moving on, going straight and choosing life. I'm looking forward to it already. I'm going to be just like you: the job, the family, the f**** big television, the washing machine, the car, the compact disc and electrical tin opener, good health, low cholesterol, dental insurance, mortgage, starter home, leisure wear, luggage, three-piece suite, DIY, game shows, junk food, children, walks in the park, nine to five, good at golf, washing the car, choice of sweaters, family Christmas, indexed pension, tax exemption, clearing the gutters, getting by, looking ahead, to the day you die”). Ele não diz normal, mas diz “se endireitar”, e na afirmação que será igualzinho a nós (nós! Eca!), ele transparece que tentará ser normal, mesmo que a normalidade seja equivalente a uma vida tediosa. Uma vida em que ter é muito mais importante que ser, e onde valemos as bugigangas que acumulamos. Esta normalidade está muito mais próxima da gente que aquela de Humbert, claro. Mas pense bem - tanto a “tudo bem ir pra cama com uma menina de 13 anos” quanto a “você é o que você compra” não poderiam ser abolidas?
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