A trama nem importa. Nos anos 60, Jude, um inglês da classe operária, vai pros EUA, onde conhece Lucy, uma mocinha rica. Os dois se apaixonam e vão viver juntos em Nova York, onde conhecem uma cantora que é a cara da Janis Joplin mas se chama Sadie, que namora um músico que lembra o Jimmy Hendrix mas se chama Jo-Jo. Tem também todos os outros personagens famosos do repertório dos Beatles, a Guerra do Vietnã, drogas psicodélicas... Mas o principal que você precisa saber é que trata-se de um musical com um visual esplendoroso com canções magníficas. E tudo dirigido pela Julie Taymor que, além de ter nos dado dois filmes visualmente impactantes como “Frida” e “Titus”, ainda é respeitada por levar o musical “O Rei Leão” à Broadway. A mulher sabe o que tá fazendo, sem dúvida.
Eu fiquei toda hora lembrando do belíssimo “Hair”, porque as homenagens ao filme de 79 são constantes. Em “Across”, a chegada dos amigos a uma NY cheia de homens engravatados remete diretamente ao “Where do I go?” de “Hair”. Ambos os musicais são anti-guerra e tem uma trilha sonora incrível (embora as coreografias de “Hair” sejam muito superiores, assim como a história). Mas Julie se esforça. Cada quadro é caprichado, como se fosse uma pintura, repleto de cores e detalhes. Quando o pessoal canta “Dear Prudence” e pede pra que a garota deprê olhe em volta, é também um convite pro público. Na sequência do recrutamento, por exemplo, a gente se lembra das gracinhas de “Hair”, dos militares brancos cantando “Garotos negros são deliciosos”. Em “Across” o número mais marcante e elaborado começa com o Tio Sam apontando pra gente, saindo do notório pôster pra cantar “I want you”, e chegando a uma linha de produção em que homens são encaixotados. A conclusão da cena é divertida: esperando ser dispensado, o pacifista se diz um psicopata pedófilo, drogado e homossexual, ao que o militar responde: “Desde que você não tenha pé chato, tá dentro”. Nos EUA só muda a guerra, então as críticas ao Vietnã soam hoje como protestos contra a invasão do Iraque. Irônico é que antes do início do filme passou, como sempre, um comercial dos Marines, os fuzileiros navais que a gente já viu em “Nascido para Matar”, com todo aquele fascismo no preparo dos soldados. Mas os americanos têm orgulho de seus soldados e da lavagem cerebral a que são submetidos. Outro dia, ao ver “Soldado Anônimo”, aprendi que os filmes que pra gente condenam as guerras funcionam como afrodisíaco pros soldados. Na cena dos helicópteros ao som de Wagner de “Apocalipse”, os fuzileiros acompanhavam com a voz e vibravam. Pra eles o auge era quando o helicóptero bombardeava uma aldeia vietnamita cheia de crianças.
A Julie contrapõe todos os comerciais das Forças Armadas presentes em todas as sessões de cinema daqui (é impressionante, tem comercial recrutando pros Marines, pra Aeronáutica, pra tudo, e todos dizem que lutam pela nossa liberdade) com uma linda cena de soldados literalmente pisando no Vietnã enquanto carregam a Estátua da Liberdade e cantam “She's so Heavy” (ela é tão pesada). E como é. Em seguida as dançarinas fantasiadas na água fazem uma ótima referência à foto da menina vietnamita nua, ardendo em napalm. Mas nem tudo é perfeito. “Across” passa a cansar na metade. O número do Mr. Kite e toda a sequência do Magical Mystery Tour são bonitos, mas um pouco longos (aliás, quem faz o Mr. Roberts é o Bono!). E a mudança da América conservadora pros distúrbios em Detroit parece forçada, assim como outros cortes. Mas eu chorei de qualquer jeito. Põe um caixão, uma mulher cantando e pessoas em pranto e eu choro fácil, fácil.