DA VEZ QUE ESCAPEI DE UM LINCHAMENTO – PARTE 2
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DA VEZ QUE ESCAPEI DE UM LINCHAMENTO – PARTE 2


(Leia a primeira parte antes, ou não vai entender nadinha).

Cheguei à faculdade na sexta de manhã, um pouco atrasada, e encontrei todas as minhas colegas em pé, num círculo, em grande alvoroço. E assim que entrei, todas olharam pra mim e se calaram. Eu pensei: “Ish... Aí tem!”. Mas não conseguia imaginar o que poderia ser. Acontece que naquele dia o jornal tinha publicado uma carta revoltada da turma de Pedagogia da Univille. Lembro pouco do teor da carta, só que ela levava a minha crônica muito, muito a sério. Implicava com dois termos, “pestinhas” e “cultura inútil”. Dizia que eu não tinha nada a ver com o curso. Que elas sim eram estudantes sérias. E aproveitava pra cutucar a ACE. Que eu saiba, existiam apenas duas faculdades de Pedagogia em Joinville na ocasião. Ambas pagas. Eu comecei na Univille, cursei um ano lá (na realidade, apenas três disciplinas, porque consegui ser dispensada das outras – quem disse que o curso de Propaganda de doze anos atrás não havia servido pra nada?), e notei que, se eu me transferisse pra ACE, conseguiria me formar um semestre antes. Fiz os cálculos e dava uma economia de 4 mil reais. Então me transferi, sem dor na consciência. O nível dos dois cursos era muito parecido, e lamento dizer, não muito bom. Mas lá estava uma carta da turma inteira da Univille (elas não se mobilizavam tanto pra pedir paz na Terra) protestando contra uma inocente crônica minha. E era essa carta que minhas colegas da ACE estavam lendo na sexta, quando cheguei atrasada.

A professora mandou ler a carta em voz alta, e a aluna que tinha o jornal a leu. Leu a crônica também, e confesso que não é legal ver um texto que você escreveu ironicamente, com humor, ser lido com voz de enterro. A professora manifestou seu desapontamento com a crônica. Disse que jamais poderia esperar uma coisa assim vinda de mim, e admitiu, com voz embaçada, que quando leu o texto, no dia anterior, até chorou. Eu pensei: devo estar sendo castigada por todos os meus pecados. Fui chamada à diretoria da faculdade, enquanto minhas colegas redigiam uma carta pro jornal protestando, elas também, contra a minha crônica.

Lá na diretoria, quiseram me intimidar. Disseram que a crônica fazia muito mal à imagem do curso. Expliquei que em nenhum momento eu me pus como porta-voz do curso, e que estava falando apenas em meu nome, o que tava bem claro no texto. Disseram que da próxima vez me expulsariam da faculdade. Perguntei se eles já tinham ouvido falar em liberdade de expressão. Disseram que eu estava terminantemente proibida de publicar qualquer palavra relacionada ao meu estágio. Perguntei se eles estavam me censurando assim, na cara dura. Disseram que sim.

Fiquei bem revoltada. Escrevi e mandei pro jornal duas crônicas relatando o bafão. A primeira foi esta (repare que deve ter sido pouco depois dos atentados de 11 de Setembro):


MEREÇO A PENA DE MORTE

Olá, esta é a pária da sociedade falando. Uma crônica que escrevi sobre o meu estágio causou grande comoção. Ainda não entendi o porquê, já que trata-se de um textículo pessoal, inocente e leve. Opa, “textículo” pode?! Agora me acusarão também de usar linguagem chula. Parece que eu fui a primeira criatura na história da humanidade a: 1) referir-se às crianças como “pestinhas” (um termo que pode até ser visto como carinhoso); 2) cursar uma faculdade sem o objetivo de seguir a profissão; e 3) dar graças aos céus que o curso esteja perto do fim. É óbvio e irrefutável que jamais qualquer estudante, de qualquer cadeira, tenha iniciado uma contagem regressiva para receber seu diploma.

Por causa destas observações inéditas, quase fui linchada em praça pública. Seguiram-se cartas de protesto e reuniões intermináveis, e, apesar de eu não haver presenciado crises de choro, imagino que elas tenham ocorrido. Por pouco não queimaram meu artigo e me jogaram junto na fogueira. Me senti numa inquisição de dar inveja a Torquemada. Podem me chamar de Lola, a Bin Laden de Joinville.

Talvez não devesse publicar isso, pois trata-se de outra revelação surpreendente, mas há pessoas que não são muito afeitas à leitura. Como não lêem, têm dificuldades em compreender ironias. Levam um texto sarcástico ao pé da letra. Tudo na vida é sisudez pra quem interpreta humor de forma literal.

E, oh, Santo Ofício, o que eu quis dizer com “cultura inútil”? Pra ilustrar, vou citar uma piada contada por gente mais competente que eu. Lembram do TV Pirata? Havia um esquete fantástico, do qual nunca me esqueço. Uma família calmamente assiste à TV, na sala. De repente, um grupo de terroristas invade a casa, aponta uma metralhadora pro pai e pergunta: “Rápido! Quais são os afluentes da margem esquerda do Rio Amazonas?” O pai responde corretamente, os terroristas vão embora, e ele suspira: “Ufa! Sabia que um dia isso ainda ia ser útil!” É, sou mesmo uma herege por rir destas blasfêmias.


Só que a editora do jornal se confundiu e publicou a segunda (e última) crônica antes. Esta aqui:


RECEITA DE BISCOITO

Sabe o que os jornais faziam na ditadura militar, quando seus artigos eram censurados? Publicavam longas receitas culinárias ou poemas de Camões, e os leitores logo reparavam que algo estava errado. Nestes tempos bicudos de hoje que, infelizmente, não são tão democráticos quanto parecem, lá vou eu dar uma receita. Outras crônicas deveriam estar neste espaço, mas não estão, e não por causa d’A Notícia, que está sendo uma mãe pra mim. Você entende.

Não sou nenhuma maravilha na cozinha. Na realidade, nunca tinha feito nada antes de vir pra Joinville. Só uma vez, na escola (uó, uó, patrulhamento em alerta!), quando tinha 14 anos (ufa, respire aliviado!), tentei preparar uma torta de café. Ninguém me avisou que o café da receita era em pó, não líquido. Só uma corajosa menina aceitou provar um pedaço, e ela passou o resto do dia na enfermaria. Meus outros colegas usaram minha torta para fins mais nobres, como jogar futebol com ela. Ela era borrachuda e pulava uma beleza. É tudo verdade, como diria o Orson Welles.

Após uma experiência traumática dessas, o correto seria nunca mais chegar perto de um fogão. Mas eu sou teimosa, e descobri como se fazem deliciosos biscoitos com pedacinhos de chocolate. Certo, talvez não seja uma das grandes invenções do século, é provável que nem invenção seja, mas é fácil. Qualquer um pode fazer. Até eu. Pegue ½ xícara de margarina, ½ xícara de açúcar, ¼ de xícara de açúcar mascavo, um ovo, um tiquinho de baunilha, de fermento e de sal, e misture tudo. Acrescente 1 xícara de farinha de trigo e 100 gramas de chocolate amargo picado. Se quiser, ponha nozes. Sempre jogo um gostinho de licor pra dar aquele tchan a mais. É interessante, neste estágio (oh Deus! Palavra proibida!), provar a massa. Acredite: o negócio é muito bom cru. Depois de provar, geralmente sobra uma coisinha de nada pra levar ao forno. Com sorte, isto se transformará no biscoito sobrevivente. Coma-o logo, antes que surjam visitas inesperadas. Serve uma pessoa.


Tá, essa crônica não tinha nada de inocente, eu sei, mas seriamente, era tão escandalosa? Deu o maior chabu. O último capítulo vem aí.
Último capítulo aqui.





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