DOIS EM UM: VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E MASCULINIDADE
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DOIS EM UM: VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E MASCULINIDADE


“A tradição é a personalidade dos imbecis”. A frase é atribuída a Albert Einstein, mas foi o compositor Maurice Ravel (do lindo "Bolero") que disse isso (obrigada, Camila!). Acho que podemos assinar embaixo.
Hoje é o Dia Mundial pela Prevenção da Violência Doméstica contra Crianças. Uma das coisas que mais me chocam na questão de “bater para educar” é como o pessoal que aplica essa punição não a vê como violência doméstica. Pior ainda: como, quando muitos desses meninos crescem, eles veem que “tornaram-se homens” apanhando (sei que meninas apanham também, e muito, e que mães batem também, e muito, mas não vejo esse “me orgulho de ter apanhado” vindo de mulheres adultas). Muitos são gratos a quem os bateu, ainda mais quando foi o pai. Vivemos num mundo ainda tão bizarro que, muitas vezes, o principal vínculo “afetivo” que une um menino ao seu pai é o castigo físico. O garoto acha que está sendo disciplinado, que seu pai está lhe dando atenção, e cresce achando que esta é a única forma de educação possível -– afinal, funcionou com ele, não é mesmo? Ahn, não. Vários desses meninos descontam suas frustrações, sua raiva, sua angústia de sofrer violência das mãos de quem deveria protegê-los, em outras crianças. Se você tem dúvidas, pergunte pra professoras e diretoras de escola (uso o feminino porque as mulheres são a vasta maioria no ensino fundamental): quem são os bullies? Quase sempre, são os que mais apanham em casa. Eles passam a agir assim porque é como aprenderam a lidar com os conflitos, e por vingança. E também, numa lógica deturpada, tem bully que pensa que está educando sua vítima. Que, se ele insistentemente bater, aterrorizar e humilhar o gordinho da turma, esse gordinho vai tomar jeito na cara e emagrecer. Porque todos os problemas se resolvem dessa forma, na base da intimidação.
Aliás, esse tipo de discurso é algo muito comum entre os masculinistas e demais misóginos e machistas: que o bullying nem é algo negativo, porque homem que é homem supera esses traumas, e usa a violência que sofreu para formar caráter. Soa familiar? “Formar caráter” é o que esses mesmos homens juram que aconteceu com eles, graças à disciplina física que receberam dos pais.
Por exemplo, tem algo mais inútil que bater no filho porque ele estava batendo no irmão ou irmãzinha? Ele já aprendeu de algum lugar, muito provavelmente dos pais, que bater é um meio rápido de enfrentar conflitos. Que impor medo é uma ótima forma de impor respeito. Que não é considerado covardia alguém maior e mais forte bater numa criatura menor. Seu filho aprendeu a lição -- ele só está repetindo o que aprendeu. E essa é a recompensa que recebe, uma palmada? O vídeo “Children see, children do” (as crianças veem, as crianças fazem) mostra o óbvio: crianças imitam adultos, principalmente seus pais. Quem é contra a violência não pode ser violento. Simples assim.
E tem mais: quem é contra aquela velha modalidade de violência doméstica em que os homens espancam suas esposas (vou colocar uns dados básicos: cinco mulheres são agredidas no Brasil a cada dois minutos; um em cada cinco dias que a mulher falta ao trabalho é consequência de violência doméstica; dez mulheres são mortas por dia no Brasil, quase sempre por parceiros ou ex-parceiros, que consideram a esposa ou namorada sua posse) precisa ser contra esta outra modalidade de violência doméstica de bater nos filhos. Porque os dois comportamentos estão intrisecamente ligados. O garoto que vê hoje o pai bater na mãe será um possível agressor de sua esposa no futuro. As crianças que apanham dos pais muito provavelmente baterão nos próprios filhos. Romper esse ciclo de violência começa agora, já, hoje, com você. Sabe qual outra data comemorativa temos hoje? É o Dia Internacional do Homem. No Brasil, ele é mais “celebrado”, digamos assim, no dia 15 de julho. Mas, em vários outros países do mundo, é hoje. Não acho que homem precise de um dia só pra ele, num mundo que ainda é dele, feito por ele e pra ele, dominado por ele. (Dados básicos: só 10% dos países são comandados por mulheres, mulheres ainda ganham 30% menos que homens; mulheres fazem 66% do trabalho e produzem 50% da comida no mundo, mas recebem 10% da renda e possuem 1% da propriedade). Mas, se este Dia do Homem for usado pra se pensar em como os homens podem contribuir para diminuir a violência, sou a favor. Se este dia for usado pra se discutir um modelo falido chamado masculinidade, ótimo (faça uma lista rápida sobre a que você associa masculinidade, e veja se não aparecem itens dúbios e perigosos aí. Ah, seria lindo se masculinidade fosse só associada a jogar futebol, como implica o cartaz acima!).
São dois fracassos retumbantes que andam sempre juntos: um modelo de masculinidade que se baseia em agressividade, violência, força bruta, arrogância, competitividade exacerbada, desprezo e ódio pelo diferente, e um modelo de educação que se impõe pelo medo, pela violência, que definitivamente não cria seres humanos mais humanos. Se você é pai ou mãe e acha que só bater impõe limites, e que criança precisa apanhar pra aprender, saiba que tem muita gente que estuda o assunto (psicólog@s, educador@s etc) e já chegou à conclusão que a palmada está superada. Que ela não educa. Se você insiste neste método, informe-se. Ou fique com o carimbo de “perpetuador da violência”, porque este mundo “politicamente correto” que pra você está indo pro inferno realmente está mudando. E demorou, mas finalmente notamos que direitos humanos incluem as crianças também. Nada contra educar crianças, pelo contrário. Só contra educar usando a violência.
E, se você é homem, e acha que ser homem é ser agressivo e violento, faça-se o favor de ser menos homem. O planeta agradece. Nada contra os homens, muito pelo contrário. Tudo contra o que ainda passa como masculinidade.

Há uma palavrinha pesada que aparece nos dois casos, masculinidade e bater pra educar: tradição. Tradição é aquilo que você copia por não saber fazer melhor, porque nunca parou pra pensar. Substitua essa palavra por outra: reflexão. É assim que se muda. Tradição é o escudo por trás do qual os conservadores se escondem pra jurar que "é assim que as coisas são e sempre serão". Só que esse escudo hoje está cheio de furinhos. Não serve mais pra proteger seus privilégios.




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