GUEST POST: "NUNCA TIVE A CHANCE DE DAR MEU CONSENTIMENTO"
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GUEST POST: "NUNCA TIVE A CHANCE DE DAR MEU CONSENTIMENTO"


Recebi este relato da B.: 

Meu nome é B. e acompanho seu blog desde 2012. Foi um marco muito grande na minha vida, no sentido de me descobrir como feminista e de identificação com outras pessoas.
Por isso, pensei em te escrever sobre algo que aconteceu há dois anos na minha vida e que ainda me afeta, na realidade. Fiquei bastante tempo pensando em como escrever esse email. Então, vamos lá.
Era uma vez uma garotinha de 17 anos, uma pessoa alegre, cheia de sonhos, determinada, com alguns objetivos muito bem definidos. Era uma vez eu. Eu queria descobrir o mundo, conhecer outros países, mudar de cidade, fazer uma graduação, um mestrado, um doutorado... Até esse ponto, considero que eu fui muito bem-sucedida na minha "missão". Passei um ano fazendo intercâmbio em um país bem diferente durante o ensino médio, voltei, mudei sozinha pra outra cidade, fiz cursinho e depois de um ano consegui passar numa ótima universidade pública. Tudo ia bem.
Isso era 2013, no meu primeiro semestre de faculdade. Mas aí, durante esse ano, comecei a sentir muitas coisas ruins (angústia, medo, desesperança), que evoluíram para um quadro de depressão grave em 2014. Eu comecei a ter crises de choro inexplicáveis, que pareciam ataques de pânico. O ano de 2014 destruiu aquela pessoinha alegre que eu era: eu me isolei, sair da cama era um esforço tremendo, fiquei agressiva, perdi meus objetivos, me descobri infeliz no curso. Os pontos mais difíceis foram no segundo semestre do ano passado e agora em 2015. Eu pensava em me matar o tempo todo, e cheguei a tentar me cortar três vezes.
O primeiro semestre desse ano foi terrível. Não conseguia mais ir pra faculdade, acabei trancando quase todas as matérias, passava muito tempo dormindo ou só deitada. Passei por várias experiências desagradáveis com psiquiatras/ psicólogos, até que comecei a fazer acompanhamento com uma psicóloga maravilhosa.
Pois bem, depois de toooda essa história... Foi com essa psicóloga que eu consegui investigar melhor o que estava, e ainda está, acontecendo comigo. E o que eu acho mais estranho é que o fato surgiu de uma maneira acidental na conversa. Talvez tenha sido meu inconsciente, não sei. Bem, o que aconteceu foi lá no meu primeiro semestre de faculdade. É bastante comum na universidade acontecerem "happy hours", que são basicamente aquelas festinhas no campus mesmo, no espaço público. 
Em maio de 2013, fui em um desses happy hours com uma colega. Bebi duas cervejas e, não sei porquê, fiquei totalmente alterada. Hoje eu suspeito que tenham colocado alguma coisa na minha bebida. Depois disso eu fiquei fora do ar por umas 3 horas, acho. Só lembro de alguns flashes. Eu mal conseguia ficar em pé, alguém me pegou pela mão, me colocaram dentro de um carro, esse alguém me penetrou, me acharam passando mal no estacionamento. Continuei bem mal até ir embora com essa colega. No dia seguinte, quando eu acordei, isso voltou na minha cabeça e, quando eu fui no banheiro, tinha sangue na minha calcinha. 
Fiquei bem assustada, passei na farmácia e comprei a pílula do dia seguinte. O fim de semana foi horrível, porque eu viajei pra uma formatura e não podia conversar com ninguém. Voltar pra faculdade na segunda foi pior ainda, porque na festa meus colegas de curso simplesmente estavam achando muito engraçado meu estado, e eu não fazia ideia de quem fez aquilo. Eu "resolvi" que não ia deixar isso me afetar; decidi na minha cabeça que eu tinha transado com um desconhecido e era isso.
Sabe, Lola, até hoje, depois de muito e muito trabalho, ainda me questiono se isso foi um abuso. Mas quando essa pessoa passou e me puxou, eu nunca tive a chance de dar meu consentimento. Eu não tinha capacidade nem de lembrar meu nome. E hoje eu entendo que apesar da "decisão" que eu tinha tomado, de não deixar isso me afetar, o que aconteceu mexeu muito com a minha cabeça. Meu estado de negação fez com que meu choque voltasse das formas que te contei ali em cima. 
A forma como eu passei a me relacionar com homens também mudou completamente; durante esses dois anos, eu quase não disse "não" pra sexo. Hoje posso afirmar que não queria de fato ter estado com 80% das pessoas com quem estive. As coisas se tornaram muito mais uma questão de "tá, vai logo" do que realmente vontade. Sem contar que depois disso, comecei a sentir muita dor durante as relações e nunca falava nada. 
Ainda é bastante difícil encarar o que aconteceu. Foi depois que isso surgiu na terapia que eu comecei a melhorar. Estou bem mais saudável do que há alguns meses atrás, e estou começando a me sentir otimista apesar de alguns dias ruins. É engraçado como renomear as coisas muda os efeitos delas sobre a gente. O que eu estou sentindo agora é um misto de medo, desconforto e alívio. 
Eu conheci um cara muito bacana recentemente, que eu sei que me respeita totalmente, mas estou com muito medo de me relacionar com alguém. 
Parece que eu finalmente estou voltando a ter consciência do que eu sinto e retomando minha capacidade de agir sobre isso, depois de muito tempo apática. Não sei como vai ser daqui pra frente, mas fico feliz só de eu conseguir pensar em um "pra frente" pra minha vida.  
Ninguém deveria passar por isso, de verdade. Eu tenho chorado por mim e por todas as mulheres que sentiram isso, e espero que todas recebam a ajuda necessária pra superar. Acho que a gente nunca volta a ser quem era antes, mas isso talvez seja simplesmente relacionada a mudanças na vida.
Bem, Lola, era isso... Desculpa pelo tamanho do texto e se eu tiver gastado muito do seu tempo. Mas senti que seria bom te escrever. Seu blog é um dos únicos lugares em que eu sinto que há espaço para tolerância e não a propagação desse ódio tão característico dos movimentos atuais.

Meus comentários: Que horror, B. Espero que você hoje tenha consciência de que você foi estuprada. E é definitivamente muito difícil deixar algo assim "pra lá". Sabemos também que é incrivelmente difícil denunciar. Denunciar quem, pra quem? Se até quando uma vítima tem provas ela é desacreditada... E isso segue acontecendo nas universidades (e não só nas brasileiras). E é preciso denunciar, fazer barulho, falar com os coletivos feministas da sua faculdade. 
Porque não é nada aceitável que alguém te leve pra dentro um carro -- te carregue, como você sugere, porque você mal tinha sequer condições de andar --, faça sexo não com você, mas em você, e te deixe no estacionamento. Isso é estupro. E é provável sim que tenham colocado algo na sua cerveja. Se você visse como tem "guias" na internet sobre como dopar meninas e mulheres para depois estuprá-las... 
Admiro sua força e sua decisão consciente de "resolver" que aquilo não iria te afetar. Mas, infelizmente, como você viu, não funciona assim. O trauma permanece, a dor reaparece, o corpo cria mecanismos pra se "desligar", para que você não sinta essa dor... Claro, as pessoas têm maneiras diferentes de lidar com isso, mas uma experiência traumática não é chamada de traumática em vão.
Ainda bem que você está fazendo terapia e que hoje você passa por um novo momento na sua vida. Mesmo assim, querida, você sendo feminista, é bom fazer parte de um coletivo e conversar sobre o que pode ser feito pra que isso que aconteceu com você não aconteça de novo, com outras alunas. Agora que você não está mais apática, talvez ajudando outras colegas você possa se sentir melhor. Fique bem, linda!




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