GUEST POST: BULLYING QUE SOFRI FOI RACISTA
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GUEST POST: BULLYING QUE SOFRI FOI RACISTA


A Mariana (que você pode seguir no Twitter pelo @marielux) tem 24 anos, é publicitária e mora no Rio. Ela me enviou um relato muito interessante relacionado a nossa autoestima, aos padrões de beleza, e ao bullying que sofreu na escola. Acho que tod@s nós podemos nos identificar.

Minha história com o bullying começou em 1997, quando esse comportamento ainda nem tinha um nome e era considerado "normal", "coisa de criança" pela maioria das pessoas. Eu morava em um dos subúrbios da Leopoldina no Rio e ia fazer 11 anos quando minha mãe me inscreveu na prova de admissão de uma escola de freiras que era tida como "a melhor da Leopoldina". A escola era bem cara e naturalmente minha mãe se esforçou muito pra poder pagar a mensalidade na época, mas pensava no meu futuro e queria "o melhor" pra mim.
Logo que eu cheguei nessa escola, notei que era diferente da massa de alunos. Pra começar, eu sempre me sentava na frente, gostava de ler, de participar das aulas e detestava as aulas de Educação Física. Além disso, eu era FISICAMENTE diferente: era alta demais pra minha idade, magra demais, com seios já desenvolvidos e tinha um cabelo loiro BEM CRESPO, enquanto as meninas consideradas bonitas e populares eram loiras, de olhos claros e cabelos lisos e longos. Por eu ter esse perfil de me destacar pelas notas, de odiar esportes, de ser "mais pobre" e de ser fora do padrão de beleza das barbies que estudavam lá, não demorou muito para as outras crianças começarem a me perseguir...
Minha vida escolar se tornou oficialmente um inferno em 1998, quando meu nome apareceu em um mural como o de melhor aluna da turma e quando começou a Copa de 98. Sim, a Copa de 98. Lembra do meu cabelo? Pois então, era crespo e loiro, o que me rendeu o apelido de Valderrama, aquele jogador horroroso da seleção da Colômbia. Daí pras musiquinhas sobre o meu cabelo, pros gritinhos de guerra me comparando ao jogador durante a Educação Física e às bolinhas de papel que as pessoas jogavam na minha cabeça pra ver se "grudavam" no meu cabelo, foi um pulo. Eu não sabia como reagir. Tinha hora em que eu xingava as patricinhas de coisa pior, mas brigar não faz parte da minha personalidade, sempre fui uma pessoa pacífica. Daí eu resolvi "ignorar", fingir que não ouvia. Mas, fora da escola, eu só fazia chorar. Chorava muito em casa, já que minha mãe trabalhava e não via. Lembro que um dos dias em que mais chorei foi quando um dos meninos disse algo como ter "nojo" de mim por conta do meu cabelo "duro" e do meu nariz "largo". Eu nunca gostei dos meninos da escola, mas imagina o que é pra uma garota de 12 anos, por mais inteligente que seja, ouvir que alguém tem nojo da sua aparência? É pra matar qualquer autoestima em formação!
As zoações estavam ficando tão insuportáveis que eu comecei a desabafar com algumas pessoas da escola. O que eu mais ouvia, além do "não liga", "ignora", "você tem que ser mais forte" era o infame "ah, então já que você não aguenta, por que você não alisa esse seu cabelo armado?". Assim mesmo, com um tom de conselho, de "vou te dar um toque", mas que só me deixava ainda mais triste. Cansada que eu estava de ser hostilizada por conta de um traço racial (sim, racial, eu posso ter a pele e os cabelos claros, mas eles são crespos por conta do meu pai que é mulato, mas obviamente ninguém aceitava o meu argumento por eu ter a pele branca), comecei a fazer relaxamento. E fiquei tão doente por conta do que as pessoas falavam sobre o meu cabelo que comecei a ficar viciada em tratamentos químicos. Se meu cabelo começasse a armar um pouco, já era motivo suficiente pra eu passar o dia triste e não querer conversar com ninguém...
Minha mãe começou a ver o que estava acontecendo comigo e foi à escola tomar satisfações, foi dizer que processaria os pais dos bullies por racismo se uma atitude não fosse tomada. Mas aqui, de novo, a velha hipocrisia do Brasil a respeito da sua miscigenação: "Ah, mas a Mariana não é negra, ela é loira". Esse tipo de cegueira apenas esvazia a realidade de que existe, sim, um padrão de beleza eurocêntrico no Brasil, que faz com que meninas de cabelos crespos sempre SOFRAM para se adequar. Não importa que eu tenha a pele clara, meu cabelo mostra que eu tenho raízes negras e praticar bullying contra alguém por conta disso é racismo SIM! Ah, mas talvez isso seja pura frescura minha, esqueci que no Brasil, esse país igualitário, essa grande democracia multi-étnica, não existe racismo...
No fim dos anos 90, ainda não havia um debate e nem pesquisas sérias sobre o bullying nas escolas. Como eu disse antes, esse tipo de comportamento nem tinha nome, então a minha escola não fez muito para coibir a prática contra mim... Lembro que rolou um esporro coletivo na aula de Matemática, mas isso só fez a coisa ficar ainda mais forte, já que a "nerd Valderrama" "não tinha força e era idiota de cagoetar pras freiras em vez de ficar quieta". O que acontecia era que o bullying era visto como "coisa de criança", como "normal" e quem reclamasse era por pura frescura ou covardia. Hoje em dia, com os suicídios e tiroteiros generalizados nas escolas americanas por conta de bullying, a abordagem dos educadores vem mudando, mas ainda há muito a ser feito pra matar esse comportamento pela raiz.
Como eu não tive a "sorte" de ser adolescente nos anos 2000, minha vida só ficou um pouco mais tranquila quando eu me dei conta de que o que me fazia diferente dos bullies - minhas notas, meu interesse pelas aulas e minha pouca disposição pra brigar - era o que me fazia melhor do que eles. Comecei a me impor e, em 2000, mudei de escola, fui para o Pedro II, um colégio federal tradicional onde havia alunos de várias origens e que tinham em comum a inteligência. No Pedro II, adotei um estilo alternativo como forma de diferenciação e defesa, mas lá não havia sombra do bullying que sofri na escola anterior.
Hoje eu sou uma pessoa com uma vida legal, me formei pela UFRJ, falo idiomas e trabalho em um lugar legal. Mas o bullying sempre deixa efeitos e estaria mentindo se dissesse pra você que amo meu cabelo. O cabelo é parte fundamental da construção da minha autoestima como mulher, que é baixa. Eu não consigo me achar mais bonita do que as mulheres de cabelos lisos e, até março do ano passado, alisava o cabelo a cada 3 meses. Depois parei de usar química para forçar um processo de auto-aceitação, no qual o seu blog tem me ajudado MUITO, e também porque não é saudável. Tenho um namorado europeu que não é contaminado pelo padrão de beleza daqui do Brasil, então ele jura que me prefere com o cabelo ao natural. Mas eu, infelizmente, não consigo acreditar e algumas pessoas sempre me perguntam como ele, com tamanha oferta de loiras em seu país, namora comigo, como se ele estivesse cometendo um crime. Isso também é uma forma de bullying que me afeta, mas espero conseguir me impor um dia, estou tentando.
Acho que só venceremos o bullying quando aprendermos a aceitar o diferente e não pautarmos nossa vida por um padrão considerado a média ideal. E eu tenho esperanças de que isso um dia aconteça, de que nenhuma criança seja rechaçada por seu cabelo, sua cor, seu peso, seu sotaque... sua particularidade que o faz especial.
No final do ano passado, depois que eu te escrevi, algo mudou: um dia fiquei mal com o cabelo que eu via no espelho (todo quebrado por conta da química, sem vida, metade alisado e com muita raiz crespa) que fiz a louca, fui no salão e cortei, detonei tudo. Ia raspar, mas a cabeleireira fez um corte curto deixando só o que tinha crescido de raiz e agora ele tá 100% natural. Confesso que ainda não me acostumei, ele tá enrolado demais comparado ao que eu cresci ouvindo dizer que era o cabelo "bonito", "certo", "feminino". Mas as pessoas na minha família e na agência em que eu trabalho gostaram do resultado, meu namorado (aquele que vivia dizendo pra eu não alisar mais) adorou. Só falta eu mesma. Efeitos do bullying. Mesmo depois de anos, eu não consigo achar bonito... Mas pelo menos as pessoas estão mudando um pouco a mentalidade e isso é ótimo. Ou será que os adolescentes são mais radicais em excluir os outros do que os adultos?
Agora estou deixando crescer e resistindo bravamente a colocar qualquer tipo de química, mesmo que cresça do jeito que era quando eu sofri o bullying. E vou seguindo assim, na minha luta comigo mesma sobre as influências que o padrão de beleza exerce em toda mulher (minha monografia foi até sobre isso, é algo que me afeta). E, acredite, seu blog nos ajuda muuuito a refletir!

Ano passado publiquei um outro guest post sobre a imposição dos cabelos lisos. E eu gosto bastante deste post que fala da importância do cabelo na identidade feminina. Este trata de como o padrão de beleza é racista. Ah, e procurando fotos pra ilustrar este post, dei de cara com um blog chamado Cabelo Crespo é Cabelo Bom.




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