GUEST POST: HOJE SEI BEM O QUE ACONTECEU
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GUEST POST: HOJE SEI BEM O QUE ACONTECEU


M. me enviou este relato tão comum, tão comum.

Sou leitora do seu blog há pouco tempo e já devorei quase todas as postagens. Sempre tive pensamentos feministas sem saber dar nomes a eles. Para a minha família e amigos, eu era “a chatinha politicamente correta”, " a careta que não acha graça de piada de loira", "a esquisita".
Escrevo para te agradecer e para contar como você abriu os meus olhos e me fez ver as coisas de forma mais clara! Escrevo para te contar como o machismo e o racismo, fantasiados de ignorância, fizeram com que eu fosse assediada dentro da minha casa sem ninguém “ver”.
Nasci em Salvador, onde as pessoas são muito preconceituosas e o machismo impera. Infelizmente! Incrível existir racismo numa cidade em que 77,5% da população é de descendência negra.  Sou filha de pai negro com família de mãe branca, e o preconceito que sofri, dentro da minha própria família, era discretíssimo: eu era “mulatinha, MAS bonitinha”, tinha o “cabelo ruim, MAS era engraçadinha”. Cresci ouvindo isso, me achando feia e inferior a todos os meus primos, e com a certeza de que meu cabelo era ruim!
Uma vez uma tia me aconselhou a casar com um homem branco para ver se ia “limpando” a minha família.
Hoje estou com 34 anos, não moro mais em Salvador e há muito tempo sei que essa visão é a mais equivocada que existe. Assunto resolvido.
Mas tem outro assunto que eu precisei ler os seus posts todos sobre o assunto para resolver, mesmo depois de muitos anos de terapia.
Minha mãe casou, teve dois filhos e se separou do primeiro marido quando meus irmãos eram muito novos. 
Em seguida namorou o meu pai, quando engravidou pela primeira vez e fez um aborto. Na segunda vez, resolveu levar a gravidez adiante. Ela era loucamente apaixonada pelo meu pai e sofria pressão da família dela porque ele era negro.
Nasci quando eles já estavam separados e meu pai, casado com outra mulher. Cresci ouvindo, da minha mãe e de toda família, que meu pai era um “nêgo filho da p*ta”! Em paralelo, minha mãe sempre teve namorados. Quando eu tinha dez anos ela trouxe um namorado para morar conosco.
Eu não gostava dele, e mesmo assim ela o trouxe para dentro da nossa casa. Eu não gostava do jeito que ele me olhava, e achava que ele bebia demais. Muito tempo depois minha mãe admitiu que ele é alcoólatra. Como ninguém havia percebido? Só eu tinha visto aquilo, do alto da sapiência dos meus dez anos de idade? Sei que esse homem me olhava com desejo e eu tinha pânico dele. E ele começou a passar as mãos nas minhas pernas sempre que estávamos sozinhos. Eu morria de nojo e pavor de que minha mãe soubesse disso, me sentia culpada, achava que EU devia estar fazendo algo para seduzi-lo, e não tinha coragem de contar nem para a minha mãe, nem pros meus irmãos, que eram adolescentes. 
Lembro que uma vez, quando estávamos na piscina de nossa casa, ele passou a mão em mim e quando estávamos jogando baralho, ele passava o pé dele no meu. Por mais que eu evitasse ficar sozinha com ele, ele sempre arranjava uma forma de me tocar, acariciar o próprio órgão sexual me olhando, mesmo correndo o risco de outras pessoas verem. Durante muito tempo eu acreditei que era coisa da minha cabeça, até que fomos passar o final de semana na casa de uns amigos da minha mãe e lá tinha um lago. Eu estava brincando com umas meninas da minha idade e ele pediu para brincar conosco de passar por entre as pernas por debaixo d’água e quando ele passou pelas minhas me acariciou e encostou o rosto no meu sexo.
Contei para as minhas amiguinhas que ficaram apavoradas e disseram que eu tinha que contar para a minha mãe! Juro que eu queria contar naquele dia, fiquei com muita raiva, ensaiei como faria... mas não tive coragem. A passagem de tempo dessa época é muito confusa na minha cabeça, eu não tenho noção ao certo de quanto tempo tudo isso durou, se 2, 3, 4 anos, se mais. Eu tinha muito medo, muito nojo e raiva da minha mãe, por eu estar passando por tudo aquilo. Tinha medo de minha mãe não acreditar, de minha mãe me culpar, de magoá-la, de ser obrigada a ter ainda mais raiva dela. Muita coisa passava pela minha cabeça e eu não consegui. 
Então fui engordando, me vestindo de qualquer jeito, tudo na tentativa de afastá-lo de mim. Foi muito tempo de tortura, até que numa noite de domingo, quando chegamos da nossa casa de praia, ele estava bêbado e começou a tirar a roupa pra mim. Tirou a blusa, depois os sapatos, depois a calça... quando estava só de cueca, eu saí correndo e contei tudo para o meu irmão mais velho, que a essa altura já estava com uns 22 anos. 
Não sei o que aconteceu depois. Ficou um vácuo na minha memória. Acho que a minha mãe ficou sabendo e lembro de ouvi-la conversando com o meu irmão e justificando que meu padrasto estava bêbado. Nunca falamos sobre o assunto. Sei que ela alugou um apartamento pra ele no mesmo bairro que morávamos e ele deixou de morar conosco. Tempos depois eles terminaram, mas são amigos até hoje. Não saem juntos, nem vivem em contato, mas sempre que se encontram na rua conversam muito, e ela sempre conta que o encontrou, toda feliz, como se nada tivesse acontecido. 
Todos na minha família sempre agiram como se nada tivesse acontecido.
Há quinze anos mudei de cidade, e há alguns anos, uma tia minha fez uma brincadeira sobre o assunto. Sim, uma brincadeira, acredite! E há pouco tempo, uma prima mais velha falou no assunto superficialmente, como se isso fosse de conhecimento comum. Mas ninguém nunca me perguntou o que realmente aconteceu. Falei sobre isso na terapia e o meu terapeuta da época minimizou com um “ah, não foi um estupro. Foi apenas um assédio. Ainda bem que nada aconteceu!” 
E eu passei muito tempo pensando que isso realmente tinha sido uma bobagem, que eu era uma tola de me sentir tão mal, tão invadida, tão violentada por uma enorme bobagem, afinal de contas, “nada de concreto” havia acontecido, e  como fui aborrecer a minha mãe com um assunto tão pouco importante?!
Hoje sei bem o que aconteceu. E foi no seu blog que entendi o que aconteceu. Nunca tive coragem de abordar o tema com ninguém da minha família, nem com a minha mãe, e quando penso no assunto fico muito magoada com ela. Fiquei muitos anos sem mexer nisso e tenho tido vontade de falar com ela e com os meus irmãos. Entender o porquê desse assunto ter sido jogado para debaixo do tapete daquele jeito. Porque ninguém pensou em me proteger, em saber como eu estava me sentindo?
Como ela conseguiu manter uma relação amorosa com um pedófilo? Como todos conseguiram ser tão machistas? Ainda não tenho coragem de falar sobre esse assunto, mas já me sinto muito aliviada de resolver aqui dentro.
Espero que as famílias estejam mais atentas a esse tipo de comportamento, que entendam que estupro não é só a violência que todos falam por aí, que entendam que esse “quase” também é uma violência brutal e o porquê que é assim.
Obrigada por tudo, Lola.

Meu comentário: Muita força pra você, M! Só posso imaginar como tudo isso ainda dói, mesmo depois de todos esses anos. Quando você achar que é a hora, converse sim com a sua família. É importante que sua mãe e seus irmãos entendam o que aconteceu, até para poderem impedir que aconteça novamente, com outra criança. Porque a gente sabe que isso acontece sempre.
Eu queria recomendar algumas obras literárias que podem te ajudar a pensar mais no assunto. Tem uma peça de teatro que gostei muito, chamada How I Learned to Drive, da americana Paula Vogel. É de 1997 e ganhou uma penca de prêmios, incluindo o Pulitzer. Foi encenada no Brasil em 2004 com o título de Como Aprendi a Dirigir um Carro, com Andréa Beltrão e Paulo Betti. Que eu saiba, a peça ainda não foi adaptada pro cinema. 
A peça parece ser bem autobiográfica, sobre uma menina branca que é abusada pelo tio durante muitos anos. Assim como você e praticamente todas as vítimas, ela se sente muito culpada. Mas, diferentemente de você com seu padrasto, ela gosta dele. Ele é, afinal, o adulto mais legal com ela, o que mais conversa, o que mais lhe dá atenção. Isso não é nada incomum entre pedófilos: durante um tempo, muitos são bacanas pra criança. E criança gosta de receber atenção de adulto. 
Outros livros incríveis, mas também terríveis, que falam de estupro de meninas são Eu Sei Por Que o Pássaro Canta na Gaiola, de Maya Angelou, e O Olho Mais Azul, de Toni Morrison. Ambos falam de meninas negras que foram estupradas, uma pelo pai, outra pelo padrasto. Quer dizer, esses livros são muito mais do que isso, e valem muito a pena serem lidos, mas só pra você saber que vai encontrar dois capítulos fortíssimos e desesperadores.
E não sei se você viu Confiar (Trust), um filme de 2010 com Clive Owen (tem o filme completo no YouTube, dublado). É muito bom. A filha dele, de uns 13 ou 14 anos, conhece um rapaz na internet, só que ele não é um rapaz. Já é um adulto de mais de 30, que tem como passatempo ser predador de garotas. A reação da menina, de como ela tenta negar para si mesma que foi estuprada, é muito interessante (e também comum: é uma estratégia de defesa).
Através da ficção, a gente pode entender melhor -- e fazer outras pessoas entenderem -- o que realmente aconteceu. Aliás, o que acontece direto. 




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