GUEST POST: NINGUÉM ESTÁ TE OBRIGANDO A UM PARTO NORMAL
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GUEST POST: NINGUÉM ESTÁ TE OBRIGANDO A UM PARTO NORMAL


Quatro anos atrás, Nanda escreveu um guest post polêmico no meu blog. 
Era um texto de ativismo materno, em defesa do parto natural, contra a cultura da cesárea que impera no Brasil. 54% de todos os partos no país são cesáreas (84% para quem tem convênio médico; 40% no SUS), o que faz do Brasil o recordista mundial nessa prática que deveria ser uma exceção. A Organização Mundial da Saúde recomenda que as cirurgias não ultrapassem 15%. 
Obviamente, isso é cultural. Não há nada de errado com as mulheres daqui que as impeça de ter um parto normal, cuja recuperação é muito mais rápida, que oferece menor risco. E cabe às ativistas discutir esses dados, rebater lendas, lutar por um atendimento decente nos hospitais, pelo direito a parir em casa, lutar pelo parto humanizado. 
É isso que muitas ativistas maternas continuam fazendo hoje e o que Nanda fazia até um tempo atrás. Hoje ela não participa mais desse ativismo. Mas naquela época (lembrando que quatro anos é um tempo imenso em matéria de internet) era importante escrever textos mais radicais, que tirassem mesmo as pessoas da sua zona de conforto. Além do mais, o feminismo ainda não acolhia muito bem o ativismo materno, e vice versa. Eu nem sabia o que era violência obstétrica. 
Essa ainda não era uma pauta também das feministas. Portanto, tenho orgulho de ter sido um dos primeiros blogs feministas a fazer essa ponte. Tenho orgulho de ter palestrado, em março, em Maceió, num seminário sobre parto e nascimento. Tenho orgulho de ter publicado o post da Nanda, que eu continuo achando excelente, apesar de alguns exageros. 
Na terça, porém, a Folha publicou uma matéria sobre comunidades pró-cesárea na internet. E descontextualizou a parte mais chocante do guest post da Nanda e a jogou na matéria, sem consultá-la, sem ver se ela mudou de opinião nesses últimos quatro anos.
Pessoalmente, eu continuo tendo a mesma visão: ninguém deve julgar mulher nenhuma se ela decidir fazer cesárea, ou parto domiciliar, ou não querer engravidar, ou se quiser fazer um aborto. Deveria ser uma escolha individual. Mas é importante falar sobre todos esses temas, porque as escolhas individuais que fazemos ou deixamos de fazer na maior parte das vezes não são tão escolhas assim (tente encontrar um médico particular que aceite fazer parto normal, por exemplo). 
Por isso, criar páginas a favor da cesárea, no país recordista em cesáreas, me parece meio como pedir desfile de orgulho hétero, sabe?
Fica aqui o texto que Nanda escreveu anteontem.
Quando se fala de opressão em movimentos sociais, o indivíduo desaparece. Racismo, por exemplo, não é (só) aquele comentário preconceituoso direcionado àquela pessoa, mas um conjunto de opressões sustentadas pela superestrutura ideológica. É o racismo estrutural que faz surgir a necessidade de cotas universitárias, por exemplo. O racismo é histórico, é diário, midiático, e é por isso que não existe racismo reverso.
O mesmo acontece com o feminismo. A opressão sofrida pelo gênero feminino não é reproduzida por aquilo que chamam de misandria. Você já deve ter visto por aí algo nesse sentido. É o que os movimentos sociais costumam chamar de falsa simetria ou falsa equivalência: quando o indivíduo retira a opressão de seu contexto social para individualizá-la e fazer parecer que determinado movimento social também está oprimindo, seja a etnia majoritária (brancos) ou o gênero majoritário (homens).
Quando você aponta que uma pessoa está reproduzindo opressão, as respostas variam. Desde uma defesa passional até um ataque irracional, a maior parte das pessoas se recusa a entender que um comportamento racista, ou machista, não a torna necessariamente uma pessoa ruim, e quando você generaliza o comportamento de um gênero ou etnia, os brados de “nem todos os homens” ou “tenho amigos negros” surgem exaltados, como se a ofensa fosse pessoal, individual.
O mesmo acontece quando se critica a cultura da cesariana que impera no Brasil. De 2010 a 2013 eu escrevi para um blog chamado Mamíferas, um dos primeiros blogs a tratar sobre questões como parto humanizado, amamentação, criação com apego, dentre outros temas. Fundado em 2008, o Mamíferas era fonte de informação e acolhimento e foi um marco ter sido convidada a escrever para um blog que me acompanhou durante a gestação e os primeiros meses do meu filho.
Eu costumava brincar que era a Mamífera política, porque meus textos compactuavam com meu background do movimento estudantil: eram combativos, sociológicos e críticos, em contraste com as minhas companheiras de blog, que tinham uma visão mais positiva das coisas. Outra diferença importante entre as minhas companheiras e eu era que eu tinha tido meu filho através de uma cesariana indesejada, como muitas outras leitoras e como muitas brasileiras.
A dor dessa cesariana indesejada me incomodou por muito tempo e me deixou combativa. A militância materna, se assim pudermos chamar, foi se reunindo e nomeando problemas existentes, como a Violência Obstétrica, e movimentando mudanças muito necessárias em um país onde mais da metade dos partos são cirúrgicos (chegando a 90% na rede privada). Alguns médicos têm taxas de 100% de cesariana. E isso é um problema sério, um problema de saúde pública. E eu queria ajudar a mudar isso, a ferro e fogo. Hoje eu ainda quero mudar, mas por outras vias.
Assim como o racismo e o machismo, a questão da cesariana é estrutural. Existe, sim, um sistema que induz a mulher brasileira a optar pela cesariana: a falta de informações verdadeiras sobre os riscos da cirurgia, a falta de treinamento dos médicos para a realização de partos normais, a falta de estruturas nos hospitais, um sucateamento do sistema de saúde pública em prol do sistema de saúde privada complementar… eu poderia continuar por horas.
Por ser um problema estrutural, ele não deve ser tratado individualmente. Por isso, o Ministério da Saúde vem criando medidas para reduzir os alarmantes índices de cesariana, como a obrigação dos planos de saúde de revelarem as taxas de cesariana de seus obstetras e a obrigação da assinatura de um Termo de Consentimento Informado quando a mulher optar por uma cesariana. Com essa assinatura, o Ministério da Saúde espera que as mulheres estejam plenamente cientes dos riscos que a cirurgia envolve (como taxas maiores de morbimortalidade materno-infantil) e que, ainda assim, desejam passar por ela.
No fim das contas, nada mudou. Na verdade, agora os obstetras têm mais uma desculpa para falar mal do governo em suas consultas, quando entregarem, contrariados, aquele pedacinho de papel para a paciente. E esse contrariamento afeta as pacientes, que se sentem acuadas, invadidas. Individualizam a questão e, de repente, se sentem oprimidas.
Há algum tempo têm surgido páginas e grupos no Facebook de mulheres que se sentem diminuídas por textos como os que eu costumava escrever e pelas medidas tomadas pelo Ministério da Saúde. Assim como alguém reage a uma acusação de machismo, elas individualizam a questão social e a transformam em algo sobre elas. 
As páginas representam o equivalente ao Orgulho de Ser Branco da maternidade: mulheres orgulhosas por terem tomado uma decisão absolutamente hegemônica, cujo maior empecilho foi ler alguma coisa que alguém postou na internet e elas não gostaram. A quantidade de pessoas curtindo essas páginas é sintomática: não apenas mostra o número absurdo de mulheres que realizam cesarianas, mas reforça a certeza de que o Termo de Consentimento Informado não serve lá de muita coisa.
Na verdade, ninguém está obrigando ninguém a um parto normal. Muito pelo contrário. A indução à cesariana é estrutural: envolve machismo (“pra não estragar o playground do marido”) envolve classismo (“parto normal é coisa de pobre”), envolve violência. Nós não estamos falando de indivíduos, mas se estivéssemos, esses indivíduos seriam mulheres adultas e, teoricamente, informadas. Responsáveis por seus corpos e suas decisões.
Mas para cada pessoa que fica magoada com um comentário de Facebook, tem uma mulher com hematomas na barriga por que um médico subiu em cima dela para realizar uma manobra de kristeller. Pra cada curtida em uma página dessas, tem alguém com um corte no períneo que talvez nunca se recupere. Pra cada mãe orgulhosa de sua cesariana, tem outra se questionando se aquela cirurgia foi necessária. Pra cada revirar de olhos durante a assinatura do Termo de Consentimento, tem um bebê na UTI com o “pulmão molhado” da prematuridade causada pela cesariana precoce.
Entenda: não é sobre você.




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