GUEST POST: O ESTATUTO DO NASCITURO NÃO PODE COMPRAR CONSCIÊNCIAS
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GUEST POST: O ESTATUTO DO NASCITURO NÃO PODE COMPRAR CONSCIÊNCIAS


R. me enviou este relato.

O assunto Estatuto do Nascituro chegou até mim pelas redes sociais e mexeu mais comigo do que eu gostaria.
Eu já havia assinado as petições contra o projeto há tempos. Eu não acreditava que ele iria muito pra frente. Acreditei na opinião de um amigo estudante de direito, que dizia para eu ficar tranquila, porque o projeto ia contra tudo o que o governo federal defende sobre saúde da mulher. E caí do cavalo em junho, ao ver que o projeto foi aprovado por uma comissão.
Comecei a postar e reblogar inúmeros textos de repúdio nas redes sociais, e assim atraí a atenção de um amigo. Uma pessoa geralmente muito sensível, conhece minha história. Também e favorável à legalização do aborto. Sobre a cláusula da "bolsa-estupro", ele me disse: "Sou contra obrigarem a prosseguir com a gravidez. Mas acho bom que haja um projeto que ajude financeiramente a vítima. Acharia certo até se ela nem mesmo chegasse a engravidar. É uma forma de apoio psicológico, acho."
Bom, aí meu mundo caiu de vez. Eu não me senti nem um pouco representada e acolhida por aquelas palavras, por melhores que fossem suas intenções. Ele percebeu claramente que eu não gostei daquilo. Pediu desculpas, e disse que eu nem precisava explicar porquê, que ele apenas sentia muito por ter me ofendido. Mas eu quis explicar.
Imagine ser alvo de uma violência brutal, que atente contra seu corpo e sua dignidade. Vítima de um crime como esses, e não se pode nem ao menos contar com o apoio da família, ou de amigos, com medo de ser julgada. De acharem que a culpa foi sua, que você mereceu, ou que só esqueceu que na verdade consentiu. Ter medo de ir à polícia, e receber as mesmas críticas, as mesmas dúvidas, passar pelo corpo de delito. 
Ter que reviver o drama mil vezes até um julgamento. Ver seu corpo mudar, sua barriga crescer, conviver com a lembrança daquilo durante nove meses. E depois de toda essa humilhação, o governo -- governo de uma sociedade que só dificulta a vida das vítimas de estupro -- te oferecer como "apoio" um salário mínimo.
Eu disse a ele: "O governo que enfie esse dinheiro no c*."
Pelo que eu entendi, porque o Estatuto está mal redigido e é ambíguo, o projeto não obriga a grávida em decorrência de estupro a manter o feto, mas o auxílio financeiro serve para estimulá-la a não abortar. Porque eles querem a todo custo salvar o feto e sua alma.
E eu me vi naquela situação. Eu fui estuprada, mesmo sem ter consciência daquilo na época. Minha menstruação atrasou três semanas, mesmo eu tomando pílula. Eu não estava grávida, mas com certeza teria abortado se estivesse.
Hoje, tendo consciência de que fui vítima de um crime, a simples sugestão de reparação financeira (de um ridículo salário mínimo) me enoja. Aliás, a preocupação do projeto não é comigo, mas com o sagrado feto, que não pode "morrer" só porque a mãe não tem dinheiro.
Mesmo a visão do meu amigo, de que seria apoio psicológico, me traz ojeriza. Como se fosse questão de dinheiro. Como se o apoio que eu esperasse da sociedade estivesse ligado ao lado financeiro, e não a minha dignidade como ser humano.
Eu gostaria de viver em uma sociedade em que eu não precisasse ter vergonha de falar sobre isso, em uma sociedade que não tivesse os dedos sempre apontados pra mim. Que promovesse campanhas de conscientização, que punisse exemplarmente os estupradores. Um lugar onde Rafinha Bastos não tivesse moral para fazer piadas cretinas com a dor das outras.
Nada disso pode ser comprado com dinheiro.
Eu fiquei triste, porque se esse meu amigo, que geralmente é tão compreensivo, pensava assim, imagine os outros. Me dei conta que as pessoas não levam essas questões a sério porque enxergam esses casos como muito distantes. Acham que estupros so acontecem na Índia, ou em becos escuros à noite com mulheres que tomaram pouco cuidado. Todo o resto não foi bem estupro, elas só se arrependeram depois de transar. E acham que só quem faz aborto são mulheres desumanas, ou fora de si, como as viciadas na cracolândia.
Penso que se as pessoas tivessem noção que ao menos uma conhecida deles já abortou ou foi vítima de violência sexual (o que, estatisticamente falando, é bastante provável) talvez elas passassem a refletir sobre essas questões com mais humanidade. 
Nessas horas eu tenho uma vontade imensa de gritar: "Parem com tanta crueldade! Vocês estão atingindo a mim também! Eu sou uma delas!" Tenho vontade de fazer com que todos os que me amam saibam do que eu passei, e se juntem a mim nessa luta.
Um dia, Lola, minha raiva e indignação serão maiores que o medo e a vergonha. Esse dia quase foi em junho, quando o Estatuto do Nascituro foi aprovado pela comissão.




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