GUEST POST: O FEMINISMO COMO ARMA DE DEFESA PESSOAL
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GUEST POST: O FEMINISMO COMO ARMA DE DEFESA PESSOAL


Este é o guest post de uma moça que admiro muito, mas que preferiu deixar seu relato como anônima. Vamos chamá-la de V.

Fiquei bastante impressionada com um relato publicado no seu blog, da mulher que desceu a porrada em seu agressor. É de se admirar a coragem de alguém que não cedeu à violência e defendeu seu espaço e sua integridade com tudo o que podia. Essa história de alguém que reagiu à violência me fez lembrar da minha própria história, que, diferente dessa, é sobre a minha não-reação. Aconteceu há alguns anos, quando eu não sabia nada sobre feminismo. E o tal guest post me fez refletir: eu não sou forte, não sei lutar, nunca fiz artes marciais ou aulas de defesa pessoal; de qualquer forma, naquele caso, os punhos não poderiam me defender, mas o feminismo teria me salvado.
Tudo começou há muito, muito tempo, quando comecei a me relacionar com esse cara. Eu tinha acabado de sair de um relacionamento longo e já estava há algum tempo sozinha. Quando o conheci, achei que seria uma boa voltar a ficar com alguém. Pelo tipo dele, achei que seria algo casual, mas acabou virando namoro sério.
Nas primeiras semanas de namoro aconteceu algo desagradável (que hoje eu reconheço como terrível), e nunca contei esse episódio pra ninguém. NINGUÉM. E você deve imaginar por quê. Estávamos no quarto dele, trocando uns amassos, beijos, carícias mais ousadas. Eu estava seminua, de costas para ele, ele em cima de mim, quando eu sinto que ele me penetra, sem camisinha (até então não tínhamos transado nenhuma vez). Na mesma hora eu digo que "não" e falo pra ele parar, tento me desvencilhar, mas ele é mais forte e me segura naquela posição. Luto embaixo dele e consigo me virar. Ele me olha como se nada tivesse acontecido e pergunta "o que foi?". Minha vontade na hora foi de esmurrá-lo, mas apenas o empurrei, me vesti e fui embora na hora. Algumas horas mais tarde, ele me envia mensagens pedindo desculpas, e eu acabei desculpando. Nos encontramos novamente no mesmo dia e continuamos o namoro normalmente.
Lola, eu não tinha noção, àquela época, que eu tinha acabado de sofrer um estupro. Eu não consenti, e ele me forçou a fazer algo que eu não queria. Mas eu não entendi dessa forma. Afinal, eu estava seminua, eu estava me esfregando com ele, não estava? E ele era meu namorado, como podia ser estupro? Se eu soubesse das coisas que eu aprendi com o feminismo e com feministas como você, teria terminado com ele ali mesmo. Não sei se teria denunciado, mas teria me afastado dele. Porque eu saberia que foi um estupro. O feminismo, naquele momento, teria me impedido de continuar com um cara que tentaria me estuprar de novo (meses mais tarde), e, principalmente, teria me impedido de entrar em um relacionamento abusivo que quase me matou.
Esse namorado praticava artes marciais. Ele tinha um comportamento agressivo e fui descobrindo isso aos poucos. Uma vez, tivemos uma discussão porque eu estava com ciúmes dele, e, no meio da briga, joguei um objeto do quarto dele no chão. Só vi ele se virando para me dar um soco, o punho fechado pegando impulso para me atingir. Encostei na parede e fechei os olhos. Ele parou o movimento no meio do caminho. Não me bateu. Então fiquei em choque, paralisada, comecei a chorar e soluçar, e, como uma estátua, deixei que ele me abraçasse, quando tudo que eu sentia era medo dele. Se tivesse me socado, teria me machucado muito, talvez me deixado inconsciente. Esse episódio se repetiu outras vezes. Consciente de que eu tinha noção da força dele, ele ameaçava algum golpe e parava no meio do caminho, porque sabia que bastava isso para me intimidar.
Ele também era extremamente possessivo e obssessivo. Quando saí com meus amigos para o bar, em uma das raras vezes que eu saía sem ele, não percebi que ele estava me seguindo o tempo todo, inclusive subindo em árvores para me vigiar. Só percebi que ele estava me perseguindo quando cheguei em casa bem tarde e fui surpreendida ao abrir o portão, quando uma mão segurou a minha boca, por trás. Era ele. Estava escondido no meu quintal, esperando eu chegar para exigir satisfação sobre coisas que eu fiz nessa minha saída (como beber e conversar). Aquilo me aterrorizou. Mesmo assim, continuamos namorando.
O feminismo depois me ensinaria que esse era um relacionamento abusivo. Eu não sabia disso e não contei pra ninguém sobre a violência que eu sofria. Porque não considerava violência. Tentava acreditar que era "amor excessivo". No entanto, eu sabia que havia algo errado. Tentei terminar o relacionamento várias vezes, mas não consegui. Em parte, pela minha condição de oprimida, de vítima que não consegue sair da situação sozinha. Em parte, porque em uma das vezes que fui até ele dizer que não dava mais, ele ameaçou se matar com uma arma de fogo. Na minha frente.
Até hoje acho difícil de acreditar, mas quem dera eu tivesse apenas inventado isso tudo. Precisei de um estímulo externo para conseguir sair dessa situação: comecei a me envolver com uma pessoa e via nesse relacionamento que começava a se formar a chance de me livrar desse cara. Tomei coragem e fui terminar o namoro, depois de vários meses de não-reação. Ele tentou de todas as formas me manipular, me sensibilizar e me chantagear emocionalmente para que eu não fizesse isso. Mas consegui terminar e fui embora. Para o meu desespero, aquele não seria o fim. Na verdade, seria o começo do meu maior pesadelo.
Voltei à casa dele alguns dias depois para buscar minhas coisas que tinham ficado com ele. Grande erro. Ele me trancou no quarto e pediu satisfações do que eu estava fazendo esse tempo que eu não estava mais com ele. Agarrou meu cabelo, puxando minha cabeça para trás, e começou a me ameaçar. Eu gritei. A família dele conseguiu entrar no quarto e impedir que o pior acontecesse. Descobriram que ele tinha escondido algumas facas embaixo da cama. Ele queria me matar. E, mesmo depois disso, eu não fiz nada. Eu não reagi, Lola.
Ele passou a me perseguir de todas as formas possíveis. Indo à minha casa, me ligando, me passando mensagens, abordando meus amigos. Eu dizia não, não quero mais te ver, mas não adiantava. E eu acabava tendo que responder a todas as investidas dele, mesmo que fosse para continuar dizendo não, não, não.
Esses dias li um texto de Gavin de Becker que falava sobre stalkers e percebi o quanto eu estava errada em ter atendido a cada aparição dele, como se eu devesse respostas a ele. Seguem alguns trechinhos (traduzidos porcamente, mas lá vai):
"Persistência prova apenas persistência - não prova amor. Stalking (perseguir alguém) é um crime de poder, controle e intimidação bem parecido com o estupro. Na verdade, muitos casos de stalking podem ser descritos como estupros a longo prazo; eles tiram a liberdade e honram o desejo do homem em detrimento da vontade da mulher. O stalker reforça a mais cruel regra da nossa cultura, a de que a mulher não tem a permissão de escolher quem estará em sua vida. (...) Uma vez que a mulher decide que não quer estar em um relacionamento com um determinado homem, ela precisa dizer isso uma vez, explicitamente. Praticamente qualquer contato após a rejeição será visto como uma negociação. Quando uma mulher recebe trinta mensagens do cara que a está perseguindo e não responde, mas finalmente desiste e retorna a ligação, não importa o que ela diga, ele aprende que o custo de chamar sua atenção é deixando trinta mensagens. Para esse tipo de cara, qualquer contato será visto como progresso. Se você responde o seu stalker, ou concorda em se encontrar com ele, ou manda algum recado, você está comprando mais seis semanas dessa perseguição indesejada."
E é verdade: ele não parava de me perseguir. Até que, motivada pela pessoa com quem eu passei a namorar, resolvi procurar a Delegacia da Mulher. Falei com minha família. Avisei os meus amigos. Consegui uma medida protetiva por algum tempo. Mas ele só foi parar de me perseguir meses depois (foi preciso eu ir novamente à Delegacia da Mulher). Mesmo depois de tudo aparentemente ter acabado, passei anos com medo de encontrá-lo na rua.
Então percebo que o feminismo é bem mais que a ideia de que mulheres também são seres humanos. O feminismo também ajuda a nos defender desse tipo de situação. Porque feminismo se trata de REAGIR. De não ficar calada, de não aceitar que nem marido nem namorado faça sexo com você sem o seu consentimento, de denunciar seu agressor, de não ficar presa como vítima em um relacionamento abusivo, de procurar ajuda, de defender o seu espaço na rua ou no ônibus, de contar para o mundo os momentos de horror que vivemos só porque somos mulheres. E principalmente: feminismo é a realização de que homens e mulheres precisam acordar e reagir contra o patriarcado.
Pra finalizar: existem várias páginas em que as pessoas mandam fotos com frases que explicam porque cada uma delas precisa do feminismo. Pensei em qual seria a minha. Seria: eu preciso do feminismo para não ser a vítima mais uma vez.




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