GUEST POST: PASSEI DE OPRIMIDA À OPRESSORA
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GUEST POST: PASSEI DE OPRIMIDA À OPRESSORA


Tem se falado bastante da participação de duas celebridades, Preta Gil e Gaby Amarantos, numa edição do Fantástico chamada Medida Certa. 
Pelo que entendi, já que nunca assisti à atração e mal sei quem são essas pessoas, haverá uma competição para ver quem perde mais peso. Não em nome da aparência, que isso seria considerado fútil, mas em nome da saúde. A gente já conhece essa história.
Não tenho interesse em criticar pessoas, porque isso seria individualizar o problema. Eu critico um sistema: o sistema que só vê beleza em certo tipo físico, certa faixa etária, certa cor; que mede o caráter das pessoas, principalmente das mulheres, em centímetros da sua cintura; que ensina a meninas de dois anos que gorda é a pior coisa que ela pode ser na vida; e que ainda é hipócrita o suficiente pra fingir que a obsessão pelo corpo "perfeito" faz bem pra saúde.
A mídia obviamente faz parte desse sistema. E, enquanto Preta e Gaby são pessoas que têm o direito de fazer o que quiserem com seus corpos, elas também são celebridades, que alimentam e são alimentadas pela mídia. 
Suas "escolhas pessoais" num programa visto por um público gigantesco (ainda que, graças, caindo a cada ano -- o Fantástico já teve 80 pontos de Ibope; hoje comemora quando chega a 30), influenciam muita gente. E o recado de que deve-se fazer qualquer coisa para emagrecer, inclusive entrar numa competição e ter sua comida fiscalizada, é bem perigoso. 
Bom, bem antes do Medida Certa, a M. já tinha me enviado este forte relato da sua conscientização.

Comecei a ser agredida pelo padrão convencional de beleza com cinco anos de idade — no mínimo. Foi com essa idade que entrei no ballet, e desde então me lembro de ter preocupações com o meu corpo. Eu sentia uma vergonha infernal quando a professora pedia pra praticar alguns exercícios só de collant, pois marcava a minha barriga e eu não podia disfarçar com a saia. 
Creio que foi entre os 7 e 8 anos que passei a me achar, além de gorda, feia. Foi quando me dei conta de que ter as sobrancelhas unidas (Frida style), os cabelos volumosos e os dentes meio encavalados não fazem parte do padrão, assim como a barriguinha saliente que eu descobrira mais cedo. 
Hoje, quando paro pra olhar minhas fotos dessa época e lembro dos pensamentos terríveis acerca da minha aparência que me torturavam desde então, percebo como é extremamente doentio o conceito de beleza imposto pelo sistema e acatado por grande parte da sociedade. Eu não era uma criança feia, tampouco gorda. Deixei de me entregar a muitas brincadeiras e descobertas por causa de algo que colocaram na minha cabeça: eu precisava ser perfeita. Como meus pais não deixavam eu me depilar naquela idade, aos 10 anos eu tentei "desunir" minhas sobrancelhas com um aparelho de barbear e quase fiquei cega. 
Só fui usar os cabelos soltos depois dos 12 anos, e não foi porque havia aceitado minhas ondas, e sim porque havia comprado uma chapinha (que eu usava religiosamente até pouco tempo atrás). Se ainda hoje me privo de alguns sorrisos porque acho meus dentes feios, na infância me privava de praticamente todos.
Minha entrada na adolescência foi um inferno. Se antes os problemas com o meu corpo eram uma deturpação da realidade, agora eles estavam ali e eram reais. Aos 13 anos eu comecei a engordar um pouco, até que com 14 anos eu estava com 20 quilos a mais que o ideal. Saí do ballet porque sentia muita vergonha da minha nova forma física, além de que minhas professoras só me colocavam no fundo das coreografias e, apesar de não falarem nada, apenas os olhares das colegas já me violentavam psicologicamente. 
Passei a descontar tudo na comida e fui engordando cada vez mais, até o ponto em que quebrei todos os espelhos de casa pra não precisar mais me olhar. Sair de casa? Nem pensar! Eu só andava com a minha melhor amiga, e só saía de casa quando estritamente necessário. 
Minha viagem de 15 anos foi muito marcante e descreve bem como foi grande parte da minha adolescência: vexatória. Meus pais me pagaram uma viagem muito maior que o bolso deles na esperança de que eu socializasse, mas me deram a maior tortura que eles podiam me oferecer: duas semanas convivendo com um grupo de pessoas da minha idade. Pior: todas elas eram magras, ricas e muito bonitas, principalmente as meninas. Foi um inferno. Eu sentia vergonha 24h por dia. 
Achava que elas estavam sempre rindo de mim pelas costas, reparando nos meus defeitos, percebendo que eu não tinha tanto dinheiro, me ridicularizando. Antes de uma festa, tentei fugir do hotel, com a esperança de poder voltar pra casa e ficar sozinha. Isso resultou em mais vergonha ainda, pois todas tiveram que ficar esperando no hotel por mais de três horas antes de ir pra festa, enquanto os organizadores da excursão me procuravam. Isso foi na primeira semana de viagem e quando eu voltei pro hotel todas me xingaram muito. A menina que eu achava a mais bonita da excursão disse que "nem tinha reparado nessa guria, mas preferia não ter visto mesmo essa cara de ratazana gorda". Eu ainda me lembro dessas palavras, exatamente essas palavras.
Com 16 anos, eu estava decidida a não ser mais gorda. Pensava: "se não vou poder mudar meu rosto, então vou fazer o que posso pelo corpo". Fiz uma dieta completamente louca e emagreci 10 kg. Recuperei quase tudo em dois meses, mas o tempo sem aqueles 10 kg a mais me fez conhecer um pouquinho de autoestima. Eu ainda tinha os mesmos pensamentos que sempre tive, mas passei a controlar melhor minha vergonha, mesmo depois de retomar todo peso.
Mudei de colégio. Eu tinha um grupinho de amigas, saía em alguns finais de semana. Quando eu estava começando a ser "normal", aconteceu outro episódio vexatório, e foi justamente na perda da minha virgindade: eu não estava depilada (nem sabia que era pra estar!) e o menino espalhou isso pra absolutamente todo mundo do colégio. Ninguém mais me chamava pelo nome, só de Tony Ramos. Aconteceu a mesma coisa que havia acontecido na minha viagem de 15 anos: algumas pessoas nem sabiam da minha existência, mas passaram a saber só pra me ridicularizar. Agora eu era conhecida por todos os 3 mil alunos do colégio por causa da minha "mata atlântica", como eles chamavam. 
Me sentir gorda estava se tornando algo mortalmente incômodo de novo. E eu estava decidida a ser magra. Isso passou a ser o objetivo da minha vida. Eu precisava emagrecer pra ser eu mesma, pra não ser mais ridicularizada, não precisar mais me preocupar com quem me olha, não sentir vergonha de comer em público, não sentir vergonha de sentar, não sentir vergonha de usar nenhum tipo de roupa, não sentir vergonha de existir. Foi com muita força de vontade que em quatro meses eu perdi 21 kg, não com dietas malucas, mas com uma reeducação alimentar forte. Passei do manequim 42 pro 36. Finalmente, eu estava magra! 
Desde os meus doze anos eu não pesava tão pouco (eu estava com 17, então). E eu estava me sentindo bonita -- de fato, até meu rosto tinha mudado. Todxs se chocavam com a minha nova forma física, me elogiavam muito, e era gratificante receber tanta atenção, depois de todos aqueles anos de sofrimento. 
Foi aí que eu fui corrompida pelo sistema, dessa vez na posição de opressora e não de oprimida. Eu estava me sentindo tão bonita e magra que dedicava todo o meu tempo, dinheiro e esforço em me sentir mais bonita e mais magra. Não saía de casa sem maquiagem e chapinha, estava sempre com roupas justas ou decotadas. Comecei a mudar totalmente o meu jeito de vestir e de falar e meu círculo de amizades. Agora eu me dou conta que a minha prioridade, naquela época, era exclusivamente exibir o meu novo corpo. 
Eu ia onde tinha mais gente pra me admirar, me bajular, me dizer que eu era bonita. Eu tinha perdido a minha singularidade, mas não me importava, porque tinha sonhado com a beleza a vida inteira. Não me importava de ser só mais uma, contanto que fosse mais uma bonita. Eu estava fora de mim, eu não era mais eu. Passei a odiar pessoas gordas. Eu dizia que gordxs eram fracas e nojentas. 
Eu gostava de lançar olhares de desdém a pessoas gordas, principalmente mulheres. Logo eu! Sempre pensei que, depois de emagrecer, eu me engajaria em ajudar quem também está nessa luta, mas eu passei a ser o demônio do inferno em que eu sempre vivi! Quando me dei conta, eu já havia passado alguns meses nessa loucura completa. 
Isso que aconteceu comigo não é raro, hoje sei de várias pessoas que também passaram por isso. 
Mesmo assim, me sinto extremamente envergonhada de contar esses fatos, até porque isso aconteceu há pouco mais de um ano. Mas acho importante fazer esse alerta: o sistema pode corromper qualquer um. É muito fácil se deixar levar, e a vingança seduz muito. E a vingança, mais que contra os outros, é contra o que você era. Contra o que a sociedade te ensinou a achar a vida inteira que era inaceitável.




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