GUEST POST: UM ABUSO NO DENTISTA
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GUEST POST: UM ABUSO NO DENTISTA


A N. me enviou este relato:

Tenho um relato que gostaria de compartilhar, contando um pouco sobre como o machismo deixou suas marcas desagradáveis em minha vida, e em minha personalidade.
Tenho 20 anos. Quando tinha uns 11 anos, comecei a fazer um tratamento dentário com aparelho que durou uns 6 anos. Eu ia ao dentista toda a semana. O dentista costumava me perguntar sobre meu crescimento, se eu já havia menstruado, contava detalhes sobre como ocorriam as mudanças no corpo das jovens durante o período menstrual (inclusive nas vezes em que minha mãe foi junto, bem no começo do tratamento), enfim... Falava como médico.
Acontece que quando eu cresci mais um pouco, e minha mãe já não me acompanhava mais às consultas, ele começou a contar outras histórias, diferentes, por exemplo, sobre como na missa havia meninas que usavam saias sem calcinha para "provocar" os padres. "Eles olham, né? Que safadas, elas sabem que o corpo delas tá ficando bonito, gostam de provocar." 
Eu não percebia, mas hoje pra mim a mensagem era clara: estamos eu e você nesta sala, sozinhos. Seu corpo está mudando, ganhando forma... Se algo acontecer a culpa é sua. Você provocou.
Até que um dia uma dessas conversas (não me lembro como) terminou com as mãos dele em cima dos meus seios ainda mal formados. Não consigo descrever a sensação de impotência de estar diante de um homem, deitada em uma cadeira reclinada, ouvindo repetidamente: "Tudo bem?", como se o que estivesse acontecendo fosse um rotineiro procedimento de ajuste no aparelho. Me senti muito pequena, pequena mesmo, diante de um velho que parecia saber mais sobre minha condição de mulher do que eu mesma, que começava a entrar na puberdade. Não tive reação. Só conseguia olhar para ele e acenar com a cabeça, confirmando que estava tudo bem. Por sorte, ele não fez nada além disso, mas eu fiquei com muito medo.
Desde aquele momento, eu passei a tomar um cuidado extremo com as roupas que usava para ir ao dentista, vestir somente camisetas. Mesmo assim, ele se aproveitava da situação pra se apoiar nos meus seios. Nunca tive coragem de fazer algo além do que empurrar um pouco seus braços, tentando evitar contato. Nunca tive coragem de contar pra minha mãe.
Aliás, tentei uma vez contar pra minha mãe, mas desisti. Comecei a conversa com um "Mãe, o doutor José [nome fictício] tem umas conversas estranhas de vez em quando", ao que ela respondeu: "Ah filha, tem gente que é assim mesmo, mas não é por maldade...". Percebi que ela se remeteu à forma como ele conversava sobre a puberdade quando comecei o tratamento, mas resolvi deixar a conversa parar por aí. Ela é uma pessoa extremamente religiosa, conservadora, que provavelmente me pediria pra deixar pra lá as ações do dentista.
Recentemente, quando passei a ter mais contato com o feminismo e a entender melhor o que havia acontecido comigo pensei em denunciar (sei que ele fez e deve fazer isso com outras meninas, é uma cidade pequena do interior, e rolam boatos), mas conheço sua esposa (fiz parte do tratamento com ela), e tenho a impressão de que há algo de triste nela... Me parece que haveriam efeitos bastante negativos pra ela se o caso viesse à tona numa cidade onde praticamente todos se conhecem. Não tive, e não tenho coragem de me expor e de expor tanta gente que pode estar envolvida.
Esse é um dos acontecimentos que teve uma influência enorme em minha forma de encarar e lidar com as ações das pessoas, e por muito tempo, me fez uma pessoa passiva. Hoje me dou conta que fui condescendente em muitas situações de minha vida, mesmo depois de crescida. Um filme que junto com o feminismo me ajudou muito a enxergar isso foi Dogville (que critica muitos dos princípios da sociedade judaico cristã ocidental). 
Fico feliz por poder reconhecer isso hoje, por ter tido a ajuda de amigos, por ter entrado em contato com uma série de informações que não teria se ainda morasse nesta cidade pequena, e não estivesse na faculdade, e ainda por ter conhecido esse blog que é uma lindeza, e que a cada postagem, faz eu me sentir um pouco mais livre.




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