"SERÁ QUE FUI MESMO ABUSADA?"
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"SERÁ QUE FUI MESMO ABUSADA?"


Recebi este relato com dúvidas da B.:

Tudo bom? Eu queria primeiramente dizer que o seu blog foi extremamente importante para mim, desde minhas primeiras engatinhadas com o feminismo. Sempre fui revoltada com o machismo que era obrigada a engolir. Comecei a lutar jiu jitsu e jogar bolinhas de gude para provar que poderia frequentar um meio masculino, isso pequenininha. Hoje, danço ballet e adoro costurar, coisas que eu abominava mais nova, achando que eram obrigações minhas por ser mulher. A liberdade de gostar dessas coisas veio quando comecei a me conscientizar mais do que era, de fato, ser mulher, e o seu blog foi de uma ajuda e tanto!
Mas não estou de escrevendo para isso. O Escreva Lola Escreva também traz várias histórias de mulheres que sofreram abusos, isso quando elas mesmas nem sabiam que eram abusadas. Eu nunca contei minha história a ninguém, por medo e vergonha, por achar que não acreditariam em mim. E, principalmente, por achar que a culpa é minha. Eu consegui me desconstruir o suficiente para não achar que a culpa é das outras mulheres, mas nunca para aceitar que não foi culpa minha. Continuo com esse fantasma.
Na verdade, sempre que penso no que aconteceu eu acho que foi culpa minha. E que, portanto, não foi um abuso. Que eu deixei, que eu consenti. Mas eu tinha 10 anos. Estava com medo.
Primeiro, queria contar o que me levou, nesse dia e nessa hora, a te escrever. Alguém me indicou o livro Arquipélago Gulag, do Soljenítsin, e eu aceitei a sugestão. Isso há meses. Mas empaquei na leitura por volta da página 27, de um livro de seiscentas e poucas. O trecho diz o seguinte:
"E sua boca não foi tapada. E você pode e deveria absolutamente gritar! Gritar que vai preso! Que há malfeitores disfarçados que andam à caça das pessoas! [...]
Mas se dos seus lábios ressequidos não brota nem um som, a multidão que transita descuidadamente toma a você e aos seus carrascos por amigos que passeiam.
Eu próprio tive muitas vezes a possibilidade de gritar. [...]
Por que é que me calo então?"
Isso me fez lembrar daqueles dias. E da culpa que me persegue e me assalta. Muitas vezes não sei nem de onde veio, se foi de um cheiro ou de um olhar que me lembre dele.
Eu morei na capital até os 10 anos. Depois, me mudei para uma cidade no interior, por causa dos meus avós que foram para um sítio e meus pais foram para cuidar deles. Não conseguimos passar um mês debaixo do mesmo teto até que as brigas resultassem na gente ser expulso daquela casa. Meus pais, numa cidade estranha, foram para a primeira casa que conseguiram arrumar. Num bairro não muito nobre, com várias outras famílias morando perto. Eram três casas num mesmo terreno. Uma delas tinha esse garoto. Neto da senhoria, 16 anos. 
Ele queria passar a mão em mim, me ver nua. Eu disse que não, muitas e muitas vezes. (Talvez não com a veemência necessária. Eu deveria ter gritado, pedido ajuda). Mas depois eu pensei que, se eu cedesse, ele iria parar e me deixar em paz. Se meus pais soubessem que isso estava acontecendo, eles iriam querer se mudar na hora. A gente estava sem dinheiro, porque tinham sido duas mudanças, sendo uma para mais de 200 km, num período de dois meses. Não queria estragar mais a vida deles, estavam sofrendo muito.  E eu só conseguia pensar que iria piorar a situação. Mas mesmo assim deveria ter gritado.
Será que eles acreditariam?
Será que, mesmo depois de eu ter dito sim, eu não era culpada?
Será que eu sou culpada? 
Isso aconteceu por vários meses. Quando o rapaz chegava em casa, eu ia direto ter com ele, por medo de que, se não fizesse suas vontades, ele fosse contar para meus pais. Um absurdo! Um contrassenso! 
Não acredito que conseguia pensar assim. E o fantasma fica ainda mais assustador, porque não vejo outra atitude em mim, mesmo hoje. Quando me tocam sem eu querer, meu pavor é tanto que não consigo dizer "não". 
Nunca consegui chorar por isso. Nunca consegui dizer as palavras "fui abusada". Porque será que fui mesmo?
Será que não é algo da minha cabeça?
Me ajuda?

Meus comentários: B., querida, você foi abusada. Não é preciso que alguém coloque uma arma na sua cabeça para ser abuso. Imagine que um cara desarmado diga pra você: "Se você não transar comigo, eu mato os seus pais". Ou: "Se você não transar comigo, eu estupro a sua irmã menor". Ou mesmo: "Se você não transar comigo, eu espalho fotos íntimas suas por toda a internet". É estupro mediante ameaça, não é?
O seu caso foi parecido. Você sabia que, se o rapaz contasse pros seus pais, vocês iriam ter que se mudar novamente, sem dinheiro, sem ter pra onde ir. Contar a eles era a coisa certa a se fazer, lógico, mas você tinha dez anos e não queria atrapalhar a vida deles. Você não queria fazer nada com o rapaz, mas você cedeu por medo. 
Audre Lorde: Mulheres são poderosas
e perigosas
Foi abuso. Mas não se culpe de jeito nenhum, e muito menos permita que esse trauma te defina. Bola pra frente. Espante esse fantasma. Treine dizer "não". Você é muito mais forte do que pensa. 




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