GUEST POST: VOU ME LIBERTAR
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GUEST POST: VOU ME LIBERTAR


K. me enviou este email desesperador sobre como é se descobrir feminista e perceber que está num relacionamento abusivo. Fica aqui a grande torcida pra que ela consiga se libertar. Este ano. (O relato foi publicado em 12 de março. Leia o update no final).

Há tempo planejo escrever esse email, mais como uma forma de desabafo do que qualquer outra coisa, porém o medo nunca me permitiu. Medo porque sei que irei expor muitas feridas que tenho.
2012 foi um ano transformador para mim: me assumi feminista, vivenciei agressões do meu marido, me transformei e me reinventei todos os dias.
Eu tenho 20 e poucos anos, tenho uma filha de 3 anos de idade. Sou casada há 5 anos com o pai da minha filha.
Sempre fui uma pessoa cheia dos meus preconceitos e sim, sempre fui uma pessoa machista. Daquelas que dizia que mulher que dava muito era vadia, que se foi estuprada é porque estava mesmo de roupa curta e mereceu, e todas as coisas que hoje não suporto nem ouvir.
Não sei ao certo o que me levou à transformação, se foi um amadurecimento repentino, pessoas a minha volta, acontecimentos, ou influência externa de tudo isso junto. Não sei. Sei que hoje sei exatamente onde quero chegar e pelo que quero lutar.
Minha gravidez não foi planejada. Eu usava anticoncepcional, tomava todos os dias certinhos, e mesmo assim engravidei. Suspeito de um remédio que tomei junto, mas até hoje não sei realmente o que foi. Sei que aconteceu e quando dei a notícia para meu companheiro, que já morava comigo, e já tinha um filho de um casamento anterior, eu ouvi coisas como "vou me matar" e "isso vai acabar com a minha vida". 
Não sei como aceitei, não sei dizer se foi pura ilusão, ingenuidade. Mas decidi que teria meu bebê nem que fosse sozinha. Com o tempo meu companheiro se acostumou com a ideia. Mas eu ainda não sabia que era casada com um machista. É que todo o comportamento machista dele para mim era normal. O fato dele não colocar o próprio prato de comida, de fazer cara feia se não tivesse um copo limpo para tomar água, ou o fato dele indiretamente dizer que bom, eu tinha de limpar a casa sozinha simplesmente por ser mulher e não trabalhar fora.
Ainda grávida tivemos uma discussão que hoje não me lembro o motivo, mas como sempre foi bem acalorada, cheia de ofensas gratuitas de ambas as partes. E lembro que em certo momento eu estava em frente à porta da cozinha, e ele para passar pegou bem forte no meu braço e me jogou contra a  parede. Saiu pelo portão dizendo que ia embora e nunca mais ia voltar. Eu estava grávida, eu sou cardiopata, eu poderia ter tido um treco  e perdido o bebê, mas bom, ele não pensou nisso. E eu fiquei sentada contra a parede chorando.
Mas dentro de mim aquilo não foi agressão. Naquele momento eu achei que eu realmente tivesse sido culpada, afinal, estava ali na frente dele. Me senti culpada por tê-lo deixado tão alterado. E mesmo com marcas roxas no meu braço eu deixei passar.
Essa foi a primeira agressão.
Quando minha filha nasceu decidi não voltar a trabalhar. Porque de acordo com o que eu acredito seria muito bom para ela eu ficar com ela nesses primeiros anos, e me propus a fazer isso até que ela completasse dois anos de idade. E não me arrependo, mesmo sendo humilhada pelo meu companheiro quando ele inferiorizava as minhas atitudes como mãe, ou o fato de eu "só" ficar em casa cuidando da nossa filha. Além de tudo isso, meu pai mora conosco, um senhor com Mal de Parkinson, de quem eu cuido sozinha desde criança, quando minha mãe faleceu.
Uma vez, nossa filha já com alguns meses, meu companheiro e eu começamos novamente uma discussão que já era rotineira, e ele foi para o escritório que temos aqui na minha casa. E eu fui tentar pedir desculpas, tentar conversar, tentar concertar as coisas. Ele estava sentado em uma cadeira dessas de computador, e quando eu me aproximei para abraçá-lo, ele me chutou com os dois pés na barriga e eu fui logo contra a parede.
Essa foi a segunda agressão.
E eu não achei que foi agressão, na época, achei que tinha sido culpa minha. Afinal, eu provoquei a briga, falei demais, e ainda tentei importuná-lo num momento de nervosismo.
E assim seguimos.
Ano passado conheci uma pessoa muito especial, anarquista, feminista, militante, e eu senti que conseguia ser quem eu era com ele. E contei tudo isso. Contei tudo vendo que me doía, e que eu precisava me libertar daquilo de alguma forma. E eu sabia que se contasse para meus amigos, eles iriam dizer que eu provoquei, por ser temperamental, por ser bocuda.
E então eu me livrei de todo aquele meu preconceito. Li muito, me informei muito, e entrei de cabeça no feminismo. Mas eu não conseguia me assumir feminista por medo, medo do meu companheiro, medo de tudo.
Comecei a entender que ele teve uma criação machista, e que aquilo era um reflexo, ele cresceu assim e esse era o certo para ele. Em primeiro momento o meu pensamento e atitude foi querer mudá-lo.
Ele tem 30 anos, e mudou muito desde que me tornei feminista, muito mesmo. Mas hoje vejo que para mim não é suficiente.
Comecei a me impor. Nas brigas eu já conseguia falar que não era para ele alterar o tom comigo, que ele não mandava em mim, que eu não era dele, que ele não deveria me desrespeitar. Mas eu continuava levando a questão das agressões, que eu já sabia que tinham sido agressões, como um assunto proibido, como se nunca tivesse acontecido. E talvez esse foi meu erro.
Então um dia, bem aqui na frente do meu computador, onde estou escrevendo esse email para você, começamos uma discussão. E eu não consigo me lembrar de tudo, talvez pelo choque, mas lembro que ele apontava o dedo na minha cara e então eu peguei e apontei meu dedo e disse "e você para de apontar o dedo para mim, você não vai me intimidar", e então ele me pegou no pescoço e me colocou contra a parede. Eu não conseguia tocar o chão porque ele me levantou. E eu achei que ia morrer. 
Ele gritava comigo. E eu só tentava me soltar em vão. E eu vi meu pai no corredor gritando e pedindo para ele parar de fazer aquilo e eu só pensava que ele poderia partir para cima do meu pai. Então eu peguei uma faca dessas de serrinha que tinha em cima da mesa do meu computador, e pensei que o mataria. Eu o mataria em troca da minha vida. Mas antes mesmo de fazer algo ele me soltou. Parece surreal. E no que ele me soltou ele caiu no chão e começou a chorar e pedir desculpas. No primeiro momento eu não conseguia ter reação, eu jamais pensei que isso aconteceria comigo, jamais pensei que chegaria a esse ponto, jamais pensei que eu deixaria chegar a esse ponto. E então comecei a gritar para ele ir embora da minha casa. E ele foi pra cozinha e tentou se matar.
E eu numa cena patética fiquei implorando para ele não fazer aquilo.
Essa foi a terceira agressão.
Eu não sei porque permiti chegar a esse ponto. E não sei também porque não o denunciei. Eu dependo dele financeiramente, e sim, tenho medo pela minha filha, medo de passarmos fome, medo de ninguém entender, medo de ser julgada.
Nunca mais fui agredida, mas continuei com ele. Vi que não era o que eu queria, e que agora, graças a amigos, conhecidos e ao feminismo eu consigo apoio para terminar uma relação que já tem um histórico de agressão não somente física, mas psicológica também.
Vi que não sou a mesma pessoa, vi que não sei quem sou. E comecei a tentar me encontrar nesse meio tempo. Comecei a me redescobrir. E então me intimei: agora este ano eu me separo. Me dei esse prazo, para pensar, analisar, pesar. Para procurar advogado, conversar com meu pai, com meu irmão, porque sim, quero o apoio deles porque são minha família, mas independente dele, minha decisão está tomada.
Espero em breve escrever um email contando sobre a minha liberdade.

UPDATE PUBLICADO EM 23/7. Há um bom tempo lhe escrevi um email contando um pouco da minha história, como forma de desabafo, de encontrar em você uma inspiração para continuar. Na época contei sobre como era meu casamento, sobre tudo o que aconteceu, as agressões e algo absurdo, justamente para mim, que me descobri feminista e não acabava com essa situação. Havia escrito que acabaria meu casamento no início do ano. 
Não, não terminei no início do ano. Terminei dois meses depois, uma semana antes de você publicar meu relato.
Coloquei um ponto final nisso tudo. Decidida. 
Talvez por estar decidida e ter encontrado um grande apoio de amigxs feministas consegui dar um basta sem me humilhar, sem me deixar abater. 
Ele chegou em casa e eu o comuniquei da minha decisão.
Ele não levou muito a sério mas começou a juntar suas coisas e perguntou se era verdade, e eu confirmei. Tentou conversar, me convencer de todas as formas falando que conseguiríamos superar. Mas eu não conseguiria. Porque me doem até hoje os chutes, os empurrões e a tentativa de me enforcar. Me dói pensar que eu permiti isso, e ainda me culpo. Coloquei um ponto final. Saí de cabeça erguida.
Não tem sido difícil, não senti falta. Muito pelo contrário. Me sinto aliviada e livre, e liberdade não tem preço. 
Hoje descobri que disso tudo ficaram algumas sequelas psicológicas. Não consigo mais ter contato tão facilmente com outras pessoas, é como se eu estivesse arisca a tudo. Até mesmo um toque de carinho no meu rosto me assusta. É algo que tenho trabalhado com ajuda de pessoas próximas e doses homeopáticas de carinho, coisa que não existia há muitos anos.
O lado positivo, além da liberdade, é que tudo começou a fluir. Sentir-me mais segura tem sido um benefício enorme, e o clima da minha casa melhorou. Meu relacionamento com a minha filha de 3 anos melhorou. E tem saído tudo bem. 
Hoje me lembro todos os dias que eu consegui. Porque para ser sincera nem eu acreditava que conseguiria. 
O medo de ficar sozinha, de não conseguir me bancar, do sofrimento da minha filha, fez eu adiar tudo isso. E hoje não estou só nenhum dia, o dinheiro tem surgido, eu tenho dado conta. E minha filha tem tirado tudo de letra.
Enfim, escrevo para te agradecer porque de certa forma você e seu blog me ajudaram muito nesse processo. Agora estou tentando me conhecer, saber quem sou.




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