RADFEMS, TRANSFEMS, E MINHA POSIÇÃO CÔMODA
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RADFEMS, TRANSFEMS, E MINHA POSIÇÃO CÔMODA


Give peace a chance

O mundo trata muito mal as mulheres, fato, mas também trata mal -– não vou dizer pior, porque não estamos em Olimpíadas da Opressão -– quem não é facilmente identificável, quem está numa categoria indefinida, quem não é "normal", com todas as aspas aí. 
Eu sou gorda, nunca pintei as unhas, não tenho orelha furada, não uso maquiagem nem salto alto, mas, apesar disso tudo, nunca tive minha identidade de gênero questionada. Ninguém nunca me chamou de homem. Já tive, sim, minha sexualidade questionada -– já me chamaram de lésbica porque, na adolescência, eu jogava futebol no meio de belos homens. E, claro, como autora de um blog feminista bastante conhecido (mas se fosse desconhecido não faria diferença), hoje sou tachada de lésbica o tempo todo. Afinal, toda feminista é lésbica, odeia homens, e já realizou inúmeros abortos. Quantas vezes por dia você ouve essa propaganda anti-feminista, que não faz sentido algum?
Embora eu nunca tenha sido “feminina”, no sentido de ser vaidosa, decorativa, maternal, obediente e submissa, nunca ninguém negou que sou mulher (logicamente que fui muito cobrada para ser feminina, não para ser mulher). Nunca tive que provar que sou mulher. Nunca ninguém ouviu minha voz no telefone e teve dúvidas sobre meu sexo biológico. E, pra mim, é óbvio que, num mundo que a gente tem que provar tanta coisa todos os dias, não ter que provar ser mulher é um privilégio. Pode não ser nada vantajoso ser mulher no nosso mundo, mas é um fato aceito. 
Portanto, eu vejo como um privilégio não ter que provar todos os dias que sou mulher. Esta é a nossa primeira e mais insistente forma de segregação. A pergunta “é menino ou menina?” (nessa ordem) é a primeira a ser feita, antes mesmo que o bebê tenha nascido. E a resposta a essa pergunta, todos os estudos mostram, determina a forma como esse bebê será tratado, desde suas horas iniciais de vida. 
A ansiedade das pessoas em classificar um ser humano é enorme. É por isso que cobrimos bebês meninas de rosa e já colocamos um brinquinho em sua orelha, um lacinho em seu cabelo em muitos casos inexistente –- pra que ninguém tenha dúvidas de que é uma menina. Ninguém vai precisar perguntar “é menino ou menina?”, e já pode partir logo pra outra etapa de interação, como “que idade elx tem?”, ou “qual seu nome?”. Sem que a pessoa saiba antes se o bebê é menino ou menina, ela não fará as outras perguntas. Saber a resposta vai determinar como aquela pessoa tratará aquele bebê.
Ah, dirão algumas pessoas, então um bebê que nasce homem tem privilégios, mesmo que, anos mais tarde, esse mesmo menino/homem perceba que não se identifica com seu sexo biológico, e queira ser mulher. É, acho que ele tem privilégios, até que dê as primeiras exibições da sua não-identificação. A partir do momento em que é visto como indefinido, vai sofrer um bocado. 
Eu tive o privilégio de ter pais liberais, que nunca me falaram o que eu devia ou não fazer por ser menina, e estudei, pelo menos nos meus primeiros anos, em escolas liberais. Talvez, vez por outra, eu tive contato com alguém que queria que eu fosse mais feminina. Mas uma coisa é se recusar a pintar as unhas; outra é, prum menino, ser considerado “menos homem”, ou não ser homem o bastante. Qualquer garoto “afeminado” vai sentir a pressão pra ser mais masculino.
E não estou nem falando dos bebês hermafroditas, termo que hoje não é considerado muito bacana, e prefere-se o termo intersexual. Imagina a ansiedade de pais, médicos, familiares, enfim, todos que cercam o bebê, para determinar a qual sexo ele pertence. É a partir dessa ansiedade que vem cirurgias mutiladoras que forçam uma definição. Esse bebê continuará sendo tratado como uma anomalia. Tudo que não se encaixa numa divisão estanque de gêneros é visto como anormal, doença. Pelo menos pelo senso comum.
Eu me lembro de uma amiga que tive na juventude, a Regina. Eu era dois anos mais velha que ela; ela era filha do zelador do primeiro prédio em que vivi em SP. Eu não fazia, nem faço, distinção por classe social, e Regina era minha amigona, vivia no meu apartamento, eu vivia no dela, jogávamos futebol juntas, brincávamos de polícia e ladrão, esconde-esconde. Tive muito convívio com ela entre meus 10 e 16 anos, por aí. 
Do Being Amy
Só que, apesar do nome tão feminino, Regina não era vista como menina. Quero dizer, ela era menina, mas as pessoas ficavam ansiosas ao seu redor. Porque ela era gordinha, ainda não tinha seios, usava cabelos curtos, encaracolados, calça comprida, não tinha voz fina. Era comum que gente sem nenhuma educação, nenhuma insensibilidade, perguntasse pruma pré-adolescente de 12, 14 anos, “você é menina ou menino?”, ou dissesse, com surpresa, “ah, você é menina!” Fora o bullying que eu não via de perto, porque não estudávamos na mesma escola (ela estudava em escola pública). Mas só o que eu acompanhava já era quase todo dia. Eu não era feminina, usava bem pouco vestido ou saia, mas ninguém duvidava que eu era menina. Regina fazia o mesmo que eu fazia, e seu sexo era posto à prova diariamente. Vai me dizer que isso não afeta uma pessoa? Regina se ressentia com isso. Muitas vezes a vi chorar e a consolei. 
Detalhe: se uma menina, que não era transexual –- ela não tinha dúvida que era menina (acho, inclusive, que ela não tinha nem dúvida que era hétero) -–, sofria tudo isso, pense no que uma criança ou adolescente realmente transexual tem que enfrentar.
Portanto, eu acredito que pessoas cis (que sempre foram identificadas pelo seu sexo biológico) tenham privilégios que pessoas trans não têm. 
Outra coisa que acredito é que uma mulher trans (um homem que "virou" mulher, só pra elucidar, porque muitxs de nós somos leigxs) é tão mulher quanto eu. Não importa se ela não fez operação, se ela tem pênis: se ela se identifica como mulher, ela é mulher, ué. Deve ser tratada pelo nome que escolher e pelo pronome feminino. Simples assim (e o mesmo respeito deve ser dado a um homem trans, ou seja, a uma mulher que "virou" homem).
Uma mulher trans tem tanto espaço no meu feminismo quanto qualquer outra mulher. Mas eu sou suspeita pra falar, porque no meu feminismo, que eu considero inclusivo, homens também têm espaço. Nunca pensei em fazer um blog só pra mulheres. Eu acredito em homens feministas, e acho ofensivo quem diz que homens só estão no feminismo pra pegar mulher. Pô, eu quero mais é que todo mundo seja feminista. E é impossível mudar o mundo sem a colaboração e o empenho dos homens.
Muitas (não todas, que eu saiba) feministas radicais pensam que o feminismo deve ser um espaço só de mulheres cis. Elas excluem não só homens, mas também pessoas trans. Uma mulher trans, pra muitas radfems, segue sendo homem porque nasceu com o par de cromossomos XY. Não interessa se esse ser com cromossomos XY se identifica como mulher: para muitas radfems, ela não tem lugar no feminismo delas.
Com pensamentos assim, não é de espantar que radfems venham brigando com transfeministas faz tempo, principalmente nos EUA. Ontem me chegaram dois emails de meninas jovens preocupadas com o crescimento do feminismo radical no Brasil. Uma delas, a Brunna, de apenas 14 anos, escreveu um texto muito bom sobre as regras de um grupo radfem fechado, que levou para um outro post, este de um humanista. Reproduzo aqui essas regras (clique para ampliar; não sei quem fez os comentários em vermelho). 

Agressivo e absurdo. É preocupante que um blog radfem diga, com todas as letras, "O feminismo radical tem posicionamentos transfóbicos", e ache que tudo bem ter esses posicionamentos (a autora diz que descontextualizei sua fala). Não é assim que as radfems sairão dos grupinhos fechados. Mas nem sei se elas querem sair. Suponho que o feminismo radical esteja crescendo no Brasil, porque semana passada fiquei sabendo de dois blogs que eu nunca tinha ouvido falar.
Em 5,5 anos de blog, sabe quanto contato eu tive com radfems? Quase zero. Apenas num post chamado "Para quem não gosta, todo feminismo é radical", surgiram algumas poucas radfems nos comentários justificando o ódio aos homens. Depois, ou antes, não lembro, toda vez que algum incauto me acusava de ser feminista radical, alguma leitora vinha dizer, "A Lola, feminista radical? Ahaahuahauahau". Porque, né, de fato eu não sou. Aliás, não sei praticamente nada de feminismo radical.
Mas só pra citar um exemplo de como as radfems são um grupo minúsculo: em maio do ano passado, haveria um debate sobre pornografia feminista em SP. Uma das organizadoras do debate entrou em contato comigo porque precisava de alguma feminista anti-porn pra participar, já que todas que iriam participar eram pró-porn. Eu mandei emails pra algumas pessoas e grupos, deixei mensagens no Twitter e no blog, e ninguém se habilitou. Radfems são anti-porn, sabe? Nenhuma apareceu. Eu acho, sinceramente, que a influência de um grupo que mal aparece é bem insignificante.
Mas também acho que elas têm o direito de existir. Não é o meu tipo de feminismo, assim como as reações de algumas transfems me soam extremamente agressivas (die cis scum, por exemplo, morra escória cis, é um insulto que presta um enorme desserviço à qualquer causa, ainda mais uma que se alinha aos direitos humanos). 
Discordo de vários pontos de algumas transfems. Encher de termos cis (um termo, inclusive, que não é consenso nem entre os próprios grupos trans) um blog não especializado em transfeminismo não é algo que eu queira fazer. Banir autoras feministas importantes porque elas alguma vez falaram algo errado, acusar de transfóbica qualquer pessoa que discorda de alguma coisa trans, difamar indivíduos, discutir se a palavra trans deve ou não ter asterisco, insistir que blogs feministas falem de pessoas trans sempre que falam em gravidez, aborto, maternidade, ou menstruação -- são características de algumas transfeministas que não me agradam. No entanto, considero o transfeminismo importantíssimo para os feminismos, por trazer novas discussões sobre gênero.
Pois é, feminismos. No plural. Somos um movimento plural. Gostaria que feministas nos centrássemos no que nos une, não no que nos separa. Gostaria que não houvesse ódio entre os feminismos. Mas sei que estou falando de uma posição privilegiada e cômoda de feminismo mainstream, que já é bastante aceito na sociedade. E olha só, se a reação a este feminismo já é tão virulenta, imagina o que os feminismos minoritários não têm que enfrentar... Pior ainda é quando essa virulência vem de nós mesmxs, feministas.




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