A ONDA CONSERVADORA E A BATATA DA ONDA
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A ONDA CONSERVADORA E A BATATA DA ONDA


Coisas terríveis podem acontecer se eles se confundirem de salgadinho.

Saiu num blog da Época uma matéria que já rendeu mais de 2,500 comentários de leitores. Chama-se “Pais não revelam sexo de sua criança de dois anos e meio”, sobre um casal sueco que ainda não quer determinar o gênero de “Pop”, de dois anos e meio. Logo, a criança não é vestida apenas com roupas masculinas ou femininas, nem tratada como “ele” ou “ela”. A matéria é superficial, tem apenas três parágrafos, e não temos como saber maiores detalhes da rotina de Pop. Só sabemos que ele ou ela ainda não está na escola (o que, convenhamos, torna essa indefinição muito mais fácil). Mas, lendo um outro artigo (em inglês), descobri que Pop sabe se é menino ou menina. O que os pais fazem é não revelar aos outros o gênero de Pop. Pelo jeito, isso deve criar uma confusão maior na cabeça das pessoas que na de Pop. Mas o que mais me chamou a atenção foram os comentários na Época. Eu só li alguns, e todos eram unanimemente contra. Falavam de tirar a criança desses pais monstruosos. De proibir essa gente estranha de se reproduzir. Que isso é falta de Deus no coração (“isso”, aparentemente, não se refere a práticas de eugenia, mas de não criar uma criança como menino ou menina). Que essas aberrações só pode acontecer num país rico como a Suécia, onde as pessoas têm tempo de sobra, e o ócio, como se sabe, é a oficina do demônio. E que, pecado dos pecados, essa indefinição vai fazer a criança virar gay (ou lésbica). Quer dizer, estão confundindo tudo: sexo com gênero com orientação sexual.
A foto que ilustra a matéria... bom, ao invés de descrevê-la, vou colocá-la aqui. Uma mulher grávida segura um sapatinho de cada cor. Se o bebê nascer com pênis, terá um destino pré-determinado, uma vida de aventuras, riscos, esportes radicais, brigas... Se nascer com vagina, será coberta de rosa e moldada pra ser uma princesinha. Que só será feliz de verdade ao encontrar seu príncipe encantado (o problema, óbvio, é que príncipe encantado não existe. É só ver como os meninos são criados. Ser príncipe é coisa de boiola!). Enfim, o chocante é que os comentaristas da Época acreditam que essa divisão por castas é BOA pra sociedade!
O que esse casal sueco está fazendo me parece um pouco radical. Mas, ao mesmo tempo, o que a sociedade vem fazendo, em nome da “normalidade”, me parece mais radical ainda. Acho que estamos vivendo um novo backlash, uma nova onda conservadora. Isso de spa pra meninas de oito anos não me parece muito normal. Isso de entrar numa loja de brinquedos, por exemplo, e encontrar metade da loja azul, e a outra metade, rosa, não é normal. Tudo está dividido por gêneros hoje em dia. Até um jogo que serve para ambos os gêneros, como Scrabble (palavras cruzadas) e Banco Imobiliário, vem em versão rosa, e a palavra “fashion” escrita em cima.
Daí a Ruffles lançou o salgadinho dividido por gênero. Vocês devem ter visto, na Deborah e na Marjorie, que a Almap/BBDO (a mesma de mil e um comerciais machistas, que, talvez não por coincidência, é a agência onde a maior parte dos universitários de propaganda querem trabalhar, segundo uma pesquisa) tem um Ruffles pra meninos e um pra meninas. No comercial pra meninos, que a Deborah chamou muito bem de “para punheteiros”, aprendemos que garotos só pensam em mulheres. Não em mulheres como seres humanos com, ahn, rostos e cérebros, mas só em partes de corpo de mulheres (de onde deduzimos que a Almap decretou que meninos gays não comem salgadinhos). E aprendemos também que as meninas até pensam em homens (com rosto), mas que esse pensamento deve disputar espaço com outras coisas mais importantes, como sapatos, sapatos e mais sapatos. O engraçado é que as embalagens de cada produto não seguem necessariamente o que os comerciais dizem. Na de Ruffles para meninos (sabor costela, porque homem que é homem come carne, e mulher que é mulher come... saladinha), vemos uma bola, uma guitarra, mas neca de corpo feminino. Já a embalagem de Ruffles para meninas é rosa, lógico. Preciso dizer mais alguma coisa? Esse é um código mais forte e conhecido que quando os nazistas marcavam os homossexuais com triângulos rosa (e, sinceramente, eu nem sabia que meninas ainda podiam comer salgadinhos que engordam, sejam eles sabor cream cheese, saladinha ou costela).
Quando ouvi falar nessa história de salgadinhos por gênero, pensei que a Almap estivesse fazendo um tipo de competição interna pra ver quem na agência cria a pior campanha (prêmio: viagem a Cannes). Mas não. Agências de propaganda não criam nada. Elas apenas reproduzem tendências. Não existe a menor chance de algum gênio criativo da Almap ter acordado um dia e gritado “Eureka! Vamos lançar salgadinhos cor de rosa só pra meninas!”. Isso foi feito através de de montes de discussões em grupo e testes com o público-alvo. Ou seja, deve ter muito menino por aí se recusando a comer o mesmo Ruffles que sua irmãzinha come, porque isso o tornaria menos másculo. Faz tempo que passamos da fase de “menino brincar de boneca, nem pensar”. Agora chegamos a “menino repartir um pacotinho de Ruffles com uma menina, eca!”.
Eu fico atordoada com isso tudo. Sou jurássica, nasci em 1967, 42 anos atrás. Naqueles tempos não dava pra saber o sexo do bebê antes do parto. Reza a lenda que, assim que eu nasci, a enfermeira foi me apresentar ao meu pai. Ela disse: “Aqui está su capuccito de rosa” (foi em Buenos Aires; vamos supor que lá se falava portunhol. Acho que capuccito é botão). E o meu pai quis saber, no ato: “É menino ou menina?”. Há várias hipóteses. Pode ser que meu pai fosse um ET recém-chegado ao planeta Terra, ainda ignorante dos costumes terráqueos. Pode ser que meu pai estivesse tão emocionado com a minha beleza que ele fez essa pergunta esquisita. Ou pode ser que, quatro décadas atrás, rosa não era automaticamente associado a uma menina. Eu não sei. Só sei que, nos meus tempos, eu jogava futebol e disputava corrida de bicicleta. Brincava de boneca também, é verdade. Mas minhas bonecas tinham profissões, e nenhuma delas era modelo ou mãe em tempo integral. Se eu usava salto alto, maquiagem, pintava o cabelo, fazia chapinha? Tá brincando: numa menininha de oito anos? Era impensável não só pra mim, como pras minhas amigas também. Só vez por outra, quando a mamãe saía, a gente colocava aqueles sapatos e batom e fingia ser adulta. Mas a gente sabia muito bem que estava fingindo.
Hoje não tem mais fingimento. Tudo é real demais. Meninas são cor de rosa e meninos são azuis. Até nos salgadinhos que comem.




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