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GUEST POST: O VERDADEIRO SIGNIFICADO DA PALAVRA COMUNHÃO
Um relato cheio de decisões da E. As fotos usadas para ilustrar o post são da Marcha das Vadias do Rio, mas nenhuma das pessoas nas fotos é a E.
Sou carioca, mulher, feminista, e estou grávida. Acordei triste com tudo o que tem acontecido e pensei em compartilhar com você e com seus leitorxs a minha experiência sobre o meu sentimento de não desejar esta gravidez durante esses dias de visita do Papa ao Rio e a polêmica Marcha das Vadias. Sempre defendi a descriminalização do aborto e o acesso ao aborto legal e seguro a todas as mulheres, independente da circunstância em que engravidarem. Eu quero ser mãe um dia mas, por motivos diversos, admito que este não é um momento apropriado e que seria uma irresponsabilidade imensa levar adiante essa gravidez. Por isso, essa decisão já estava tomada antes mesmo de eu engravidar e, quanto a ela, não tenho nenhum conflito. Mas, apesar de minhas convicções, reconheço que não é uma decisão fácil. Não tem nada a ver com ética, moralismo, muito menos culpa cristã. Abortar, por si só, é doloroso, independentemente se você engravidou de um estuprador ou do homem que você ama (o meu caso). Estou grávida de quatro semanas e alguns dias e, mesmo com tão pouco tempo, já vejo o meu corpo e a minha fisiologia mudando rapidamente. E isso me deixa ainda mais ansiosa em relação ao aborto que vou fazer, já que quero resolver isso o mais rápido possível. Mas acontece que o Papa resolveu visitar o Rio de Janeiro e convocar milhões de peregrinos para confraternizar com ele, transformando minha cidade num verdadeiro inferno (com trocadilho, por favor). Você não imagina o caos que estava isso aqui. Trânsito interditado em muitos locais, transporte público hiper saturado, muito lixo pelas ruas, barulho de helicópteros sobrevoando a minha casa 24 horas por dia... A lista não para. Mas, para mim, o pior desse caos todo é que o serviço dos Correios foi obrigado a suspender a entrega de Sedex durante os dias de visita do Papa, por conta dos bloqueios no trânsito. Por causa disso, ainda não pude receber o Sedex que virá com os comprimidos de Cytotec que comprei, com muita dificuldade e medo, no mercado negro, para que eu possa abortar "em paz". Não é culpa dos fiéis, sabemos disso, e sim da prefeitura e do governo estadual, que se comprometeram a fornecer uma estrutura que não foram capazes de cumprir, apesar dos mais de 120 milhões de reais gastos. Mas é impossível, para mim, olhar para cada um desses milhões de peregrinos na minha cidade e não lembrar que há séculos a Igreja endossa o sistema patriarcal vigente e incentiva o controle às nossas liberdades individuais. Não sei se você viu, mas entre os itens do "kit-peregrino" distribuído para os participantes, está um feto de plástico e uma mini-cartilha anti-aborto. Então, a cada peregrino que eu esbarro na rua, a cada transtorno que eu enfrento por conta da Jornada Mundial da Juventude, a cada notícia que eu vejo da cobertura do evento (e nos jornais não se fala em outra coisa), eu sinto ainda mais forte a dor da opressão da Igreja sobre o meu corpo. Não bastasse isso, como o aborto ainda é proibido e criminalizado no Brasil, tive que recorrer à internet para tentar me informar, pois não há alternativa. E o que vi foi um sem-número de manifestações machistas e agressivas contra as mulheres que decidem abortar. Tudo isso tem me dado muita raiva e tristeza. Minha sorte é que eu sou feminista desde criancinha e não me abalo com o preconceito e o conservadorismo dos outros. Minha sorte é que eu tenho um namorado feminista, que é um verdadeiro companheiro, e tem me dado muito apoio e carinho. Minha sorte é que a maioria dos meus amigos e amigas é feminista (apesar de alguns nem saberem), e posso encontrar neles todo o apoio que não encontro fora desse meio. Mas sei que a grande maioria das mulheres que precisa abortar não tem a mesma sorte e é para elas que eu quero dizer: não acreditem que vocês são criminosas, não acreditem que vocês são injustas, não se sintam culpadas, não aceitem que nenhuma pessoa e nenhuma religião diga o que você deve fazer com o seu corpo. Se não puderem se sentir acolhidas por seus companheiros, parentes ou amigxs, busquem o apoio dos grupos feministas que, tenho certeza, não hesitarão em oferecer o conforto de que precisam. Ah, sim. Já ia me esquecendo de falar sobre a Marcha das Vadias aqui no Rio, no sábado. Eu já aguardava ansiosamente pelo evento há semanas. Quando descobri que estava grávida, há poucos dias, tive ainda mais vontade de participar. E foi a melhor coisa que fiz. Não concordo com a performance do casal que quebrou imagens sacras, mas quero deixar claro que este não foi o tom da Marcha. Foi um evento alegre, bonito, irreverente e politizado. Ali eu pude extravasar toda a minha raiva, tristeza e indignação junto com as mulheres, homens e transgêneros que lutam pelos mesmos direitos. Ali eu pude compartilhar o meu drama com milhares de pessoas que lutavam por mim, mesmo sem me conhecer, e pude sentir o verdadeiro significado da palavra "comunhão". Ali eu pude dançar, cantar e festejar livremente a alegria de ser mulher e ter certeza de que não estou sozinha nas minhas convicções feministas. Bom, eu ainda não sei quando meu Sedex vai chegar e nem quando vou poder fazer o aborto. Mas uma coisa eu te garanto: não fosse a Marcha das Vadias, eu hoje estaria muito mais triste e desacreditada na humanidade. Participar da Marcha me trouxe de volta boa parte do ânimo que a JMJ minou em mim nos últimos dias.
UPDATE DA AUTORA E.: O Sedex finalmente chegou, já fiz o procedimento e correu tudo bem. Fazer um aborto com Cytotec não é nenhum bicho-de-sete-cabeças. Mas dói. No útero e na alma. Seria muito mais tranquilo e menos arriscado se eu pudesse conversar abertamente e contar com uma orientação médica adequada, porque as dúvidas que surgem (até quanto a dor é normal? E se eu tiver uma complicação? Será que vou posso ficar estéril? E se eu precisar ir para um hospital? Será que eu vou ser presa? etc) são tão dolorosas quanto as contrações do aborto. Não estou feliz por ter passado por isso. Aborto e felicidade são duas coisas que não combinam. Mas estou satisfeita e muito aliviada por ter resolvido algo que pra mim era um problema, e não uma dádiva divina.
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