LEITORA PERGUNTA: COMO SERIA SE A MENINA DA NOVELA FOSSE MENINO?
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LEITORA PERGUNTA: COMO SERIA SE A MENINA DA NOVELA FOSSE MENINO?


Terça passada dei uma palestra sobre Sexualidade, Corpo e Mídia no SESC-CE, parte de um ótimo seminário que apresentou os resultados de uma ampla pesquisa da Fundação Perseu Abramo sobre as mulheres (prometo falar mais sobre isso). Uma das palestrantes foi a Maria da Penha, pra você ver a minha responsa. Mas, como diz o Borat, minha apresentação acabou sendo um “great success”. Muita gente veio falar comigo no coquetel que houve depois. Duas moças inteligentes e articuladas me perguntaram sobre a novela Insensato Coração. Afirmaram que todos os personagens homens agem e falam de uma forma machista que desvaloriza as mulheres. Eu respondi que não sabia, pois só assisto (e recomendo) Amor e Revolução, que trata dos anos de chumbo (e eu considero uma novela feminista, pois mostra o papel relevante que as mulheres tiveram na luta contra a ditadura).
Aí recebi um email de uma leitora simpática, a Aurora, falando da novela, ao mesmo tempo em que li este textinho da atriz (Bruna Linzmeyer) que faz a Leila, uma garota de 19 anos que se apaixona pelo mulherengo André (Lázaro Ramos). Se você estiver boiando tanto quanto eu, neste vídeo André comenta com um amigo como a menina se jogou em cima dele. Ele parece ser um escrotossauro (a meu ver, mais pelo que fala da esposa do colega do que pelo que fala da garota). Mas nesta cena em que Leila se declara a ele, eu gostei da resposta dele.
Nesta parte Júlio, o pai (Marcelo Valle), descobre que André tinha saído com a filha. Aqui, o pai chama a filha de vadia e recebe um tapa (gostei! Em geral é o patriarca que espanca a filha, e o público aplaude). E aqui, Leila acaba saindo de casa. Agora que você já está a par de tudo, leia o depoimento e as dúvidas de Aurora, que eu volto no final.

Aurora: Esta semana tivemos um jantar em família pra apresentar o namorado novo da minha prima. Eis que em certo ponto da noite, depois de toda a comilança, restam apenas as mulheres e o convidado na mesa. Começa a novela das 9, e logo estamos todAs engajadas numa discussão sobre os últimos acontecimentos da trama.
Talvez você não veja novela, então vou apresentar a situação bem por cima: Uma jovem vive frustrada por não se realizar sexualmente. Em busca de prazer, se joga nas baladas e começa a sair com vários caras, tudo sem compromisso nenhum. A casa vem abaixo quando o pai (que acredita piamente naquela história de mulher que transa é vagabunda) descobre que ela transou com dois colegas de trabalho dele. Como ele descobre? Do pior jeito possível: está numa mesa ouvindo os colegas falarem "horrores" de uma garota e, papo vai, papo vem, ele liga os pontos e percebe que a filha dele é a mulher em questão. Há um tremendo barraco e sequências com o pai em casa, dizendo que não criou a filha pra ser uma vadia e chorando horrores pela decepção gigantesca.
Eis o nosso diálogo na mesa:
Tia: Vocês viram que horror ela aprontou com o pai?
Mãe e prima: Ah, é, foi horrível!
Eu: Tá, mas e se a filha na verdade fosse um homem? Tipo, é o cara que sai pra balada toda a noite e passa o rodo. Será que seria a mesma coisa?
Tia, rindo nervosa: Ah, mas é diferente... Ele é PAI... Ela é filhA... E ele teve que ouvir aqueles caras falando dos detalhes...
Eu: Ela é maior. Trabalha e se sustenta e--
Mãe: Ela quer dizer que é diferente o sentimento...
Tia: É, filhO tanto faz, mas filhA o pai quer proteger... blábláblá...
E aí elas me encurralaram -- eu nunca tive um pai, não entendo nada disso. Olhando de fora me parece um argumento machista (sexo é sexo, pô. Porque se a filhA faz sexo ela corre perigo, e se o filhO faz sexo tanto faz? Se o pai tivesse ouvido meninas comentando que o filho dele é bom de cama, ou que é galinha, ele ia pra casa chorar?).
Me parece que a questão é cultural, e não simplesmente um instinto protetor que naturalmente só se aplica a meninAs. E me parece muito, mas muuuito errado perpetuar essa coisa de que "sim, papai te trata diferente, mas você devia ficar feliz, isso é porque você é especial! Na verdade, seu pai se importa mais com você do que com seu irmão! Não, ele não vê sexo como algo diferente pra vocês dois! Sexo realmente É perigoso PROS DOIS, mas o caso é que ele tá é se lixando pros riscos que o seu irmão corre! Ele só quer saber de proteger a menininha dele!". Tava todo mundo emocionado e feliz na mesa dizendo que um pai trata uma filha "com mais carinho".
... e eu boiei, porque não sou pai nem nunca tive um.
Não se trata de "vencer" o debate. O negócio é que eu fiquei intrigada. E óbvio que a primeira coisa que me veio à cabeça foi o Escreva, Lola, Escreva...
Então lá vai: É possível aplicar conceitos como feminismo e/ou machismo à família? Se sim, como a ótica feminista vê uma relação pai-filhA? Até que ponto se questiona a "espontaneidade" dos sentimentos afetivos? Até que ponto a sociedade influencia o que se passa dentro de casa?
Além disso, tem outra questão: Na novela, é clara a intenção do autor de levantar o debate. Pelo menos a meu ver, até aqui a história se mostrou a favor da menina, levando pras pessoas a noção de que está tudo bem a mulher ser sexualmente independente. Mas não é bem assim que o povo está recebendo -- lá em casa todo mundo interpretou como "o retrato da desgraça de um pai", não como "o tratamento diferenciado que uma jovem tem que enfrentar". Será que não dava um post?
Se fosse um filhO, seria o mesmo? Sim? Não? Por quê? Quero focar na reação dele em relação à filha estar "falada". Essa "proteção" é questionável ou não? Ele é retrógado, ou todos os pais são assim? Quando a filha tenta argumentar que é maior, independente, etc, por que ele não escuta? Pais se revoltam quando os filhOs vão pra cama com meninas... hã... qual o feminino de cafajeste? Ah, você entendeu. Pais brigam pra defender a honra sexual dos filhOs? Etc, etc, etc. A novela foi só um gatilho pras minhas dúvidas.

Euzinha de volta, respondendo apenas a algumas das perguntas (o resto eu deixo pra você nos comentários): Lógico que a reação dos pais seria diferente se a filha em questão fosse filho. Não consigo imaginar pais destruídos com a honra do seu filho, por ele “estar passando de mão em mão”, falando coisas horríveis sobre sua sexualidade! É só comparar: o que de horrível pode ser dito da sexualidade de um cara? Que ele broxa? Que ele goza rápido demais? Que ele tem o pênis pequeno? As opções acabam aí. (Ah sim, que ele -- o horror, o horror -- é gay!). É só lembrar quantos termos pejorativos existem pra descrever a sexualidade de uma moça: vadia, vagabunda, piranha, galinha, vaca etc etc (desculpe, meu vocabulário é meio limitado). Uma mulher não precisa fazer nada pra ser chamada de vadia. Basta ser mulher. É aquela velha história que só homem gosta de sexo, que mulher tem que se dar o respeito ― e só transar depois de casada, imagino. Quantos parceiros uma mulher precisa ter na vida pra ser taxada de promíscua? E os homens? Cadê a igualdade neste cenário?
Se a gente realmente quiser mudar a sociedade e acabar com a desigualdade entre os gêneros, é primordial que paremos de educar filhas e filhos de forma tão diferente (leia um excelente guest post sobre isso). Aquela ladainha: a menina tem que cuidar dos afazeres domésticos enquanto o irmão fica jogando videogame, o menino pode sair à vontade enquanto a irmã tem hora pra voltar, o menino tem sua curiosidade sexual valorizada enquanto a irmã deve se envergonhar. Nada disso é natural ou biológico. Ninguém nasce assim. A gente aprende.
Claro que, enquanto vivermos numa sociedade tão desigual, é compreensível que os pais se preocupem mais com a filha adolescente que com o filho. Dificilmente um senhor ou sua assistente chegarão pra um menino e dirão que, se ele sair com o velho, ganhará coisas (como aconteceu comigo com 12 ou 14 anos). Quando uma jovem engravida sem querer, sobra pra ela. Existe também a ameaça do estupro, da violência sexual. Sem dúvida, é um mundo perigoso pras meninas (e pras mulheres). Mas o pai da novela não está preocupado com nada disso (tanto que ele expulsa Leila de casa, onde ela estará mais desprotegida ainda). Ele só condena que ela esteja sendo "comentada". Seu lamento é com a sua honra ― a honra dele, como pai. Ele está chateado porque falam da sua filha, sua propriedade, com desdém. E isso é de um machismo ridículo e inaceitável nos dias de hoje.
O único “crime” de Leila é não ser mais virgem e ter transado com mais de um. Isso aos 19 anos! Em outras épocas, se Leila fosse menino, o pai, constrangido com a virgindade do filho, o teria levado a um prostíbulo. Aqui, ele expulsa Leila de casa. Que venham me falar de igualdade!




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