MINHA MAIS TERRÍVEL HISTÓRIA DE HORROR
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MINHA MAIS TERRÍVEL HISTÓRIA DE HORROR


Em março, quando o blog ainda estava no começo, escrevi um post chamado “Toda Mulher Tem uma História de Horror pra Contar”, e narrei as minhas. Não vou repeti-las aqui, vocês podem ler o texto, mas era coisa pouca, se comparado a que muitas mulheres já passaram. A gente até pode discutir responsabilidades. Por exemplo, na vez em que fui agarrada por trás em São Paulo e caí no chão, em frente ao meu prédio, eu estava voltando pra casa sozinha à meia-noite. Isso não é horário pra uma moça direita andar sozinha, né? Não, claro, uma moça direita, de família, nem deve sair de casa sem o pai ou um homem responsável por ela. Como transgredi essa regra patriarcal de boa conduta, pedi e mereci que um tarado me agarrasse. O tarado não tem culpa nenhuma! Eu é que pequei.
Quando, em Fortaleza, peguei carona com um grupo de rapazes que conheci num bar, porque eles me ofereceram carona até o hotel onde eu estava ficando, e aí pararam no meio do caminho, no prédio de um deles, e insistiram pra que eu subisse - se eles tivessem me levado à força até o apartamento deles (ou mesmo se eu tivesse subido por eles me prometerem que era só pra conversar, dez minutos e a gente te leva) e me estuprassem, a culpa seria minha, pois onde já se viu uma moça direita pegar carona com universitários que até então haviam sido simpáticos e respeitosos?
E com um sério agravante: nesses dois casos, eu já não era mais virgem. Minha vagina já havia perdido o lacre. Eu era um animal sexual à solta, pronto pra ser capturado por qualquer caçador aventureiro! Minha sexualidade livre era uma afronta, mesmo que, nesses dois casos, ela nem estivesse em questão. A única coisa em questão era o meu gênero. Por ser mulher, eu corria (e corro) o risco de ser estuprada. Só por isso.
Mas, em março, deixei de contar a história mais terrível que me aconteceu. E não a deixei de fora por querer. Não foi pensado. Acho que sempre tive muita vergonha dessa história, e por isso devo tê-la empurrado pro meu subconsciente. Mas não tenho o que esconder. Se o meu relato servir pra mudar a cabecinha de um dos mini-monstros que culpam a menina de Joaçaba pelo estupro que ela sofreu, já terá valido a pena.
Eu perdi a virgindade com 15 anos, já muito curiosa em relação a sexo. Tive os pais mais liberais do mundo (minha mãe ainda vive, felizmente). Eles andavam nus pela casa e permitiam numa boa que eu e meus irmãos levássemos namoradinhos pra passar a noite lá (meu amado papi só reclamava na manhã seguinte, se alguém usava seu barbeador). A coisa era tão natural que, na primeira vez, cheguei em casa e contei pro meu pai, creio que até meio orgulhosa: “Não sou mais virgem!”. Ele não gostou muito, ficou assustado, mas parou, refletiu, e respondeu: “Parabéns”.
Isso foi na primeira metade da década de 80. Na época, não existia isso de ficar. E foi também antes da Aids. Eu sempre exigia que meus parceiros - quase todos da minha idade, ou poucos anos mais velhos - usassem camisinha. Eles sempre pediam pra não usar. Ou era a primeira vez que usavam, ou não sabiam nem colocar a camisinha, ou ambos. Mas eu não tomava pílula, sabia muito bem como se faziam os bebês, e não queria engrossar as estatísticas da gravidez precoce. Então era com camisinha ou nada. Todos topavam.
Na minha vida de adolescente em SP não havia muito sexo. Eu nunca fiquei com ninguém da escola, apesar dos muitos amigos. Mas eram amigos, e não havia interesse sexual. Ia a algumas festas em que meus amigos e amigas bebiam até cair, e posso garantir que nunca rolou estupro, até porque a atração estava na bebida, não no sexo. Eu, de minha parte, nunca bebi. Nunca tomei drogas. Uma vez eu desmaiei, enquanto jogava pôquer com amigos durante o almoço no escritório, e quando acordei estava numa cadeira de rodas no hospital. Tenho certeza que sequer passou pela cabeça dos amigos e colegas que me levaram até o hospital e chamaram meu pai de abusar de mim sexualmente. Sinto muito, mas você tem que ser uma pessoa doente, sem coração, sem caráter, pra se aproveitar de alguém que está precisando de ajuda. Você roubaria o dinheiro de alguém que está passando mal? Então como pode achar que estuprar uma menina é normal, que ela mereceu isso?
Mas, voltando. Minha escola era em período integral. Não sobrava muito tempo pra festas. E, como eu não bebia ou fumava, não gostava muito de ir a bares ou festas cheios de bêbados e fumantes. Meus poucos namoradinhos em SP eram rapazes que eu conhecia através de amigos(as), ou no fliperama, no shopping. Eu não tinha nenhum interesse em namorado fixo. Eu só queria experimentar. Sei lá se a gente sabe o que quer aos 15, 16 anos. Era tudo novidade pra mim.
Mas, nas férias, eu e minha família sempre íamos pra Búzios, no Rio. E lá era diferente. Primeiro que estava de férias, não tinha muito que fazer. Depois que lá todo mundo andava de short e biquíni boa parte do tempo. E eu conhecia muita gente, gente “do povo”, que morava lá o ano todo, e turistas frequentes como nós, e turistas de ocasião. E eu era jovem, livre, solteira, e estava tão a fim de transar com alguns meninos como eles de transarem comigo. E alguma coisa deve ter “falhado” na minha educação, porque nunca me falaram que eu, por ser mulher, deveria ser passiva, esperar que o menino viesse até mim, me fazer de difícil, me “valorizar”. O que obviamente não significava que eu transava com qualquer um. Eu transava com quem me interessava. Não era uma maratona sexual. Eu não estava competindo com ninguém, não tinha recordes a quebrar. Mas, se o carinha fosse simpático, tivesse um bom papo, me fizesse rir e risse das minhas piadas, por que não? (Lamento dizer que sexo nessa idade raramente é bom. Muita inexperiência, ejaculações precoces...).
Foi com esse espírito que paquerei um garoto, o Maré (todo mundo tinha apelido, porque os nomes reais eram tenebrosos). Eu tinha 16 anos e ele 17, eu acho. Ele era “nativo” de Búzios e um dos rapazes mais bonitos que já vi. Andava com muita segurança, com a cabeça lá no alto, e sua auto-confiança era sedutora. Durante alguns dias houve uma paquera mútua de troca de olhares, depois de palavras. E uma noite combinamos de transar. Geralmente eu levava os meninos pro meu quarto da casa em que alugávamos. Não havia muita opção: vários parceiros eram menores, então carro tava fora de cogitação; e na praia era bem desconfortável. Motel não existia. Mas alguns meninos tinham vergonha de ir em casa, acho que isso fazia que se sentissem menos másculos. Como eu tentava ignorar restrições de gênero o máximo possível, não conseguia entender direito.
Maré apareceu com a chave de uma casa em que o primo era caseiro. A casa estava vazia, não havia sido alugada. Se não me engano, era a famosa casa onde Ângela Diniz havia sido assassinada pelo seu namorado, o playboy e machão Doca Street (Doca quase foi absolvido por alegar “legítima defesa da honra”. Pelo menos alguma coisa mudou de lá pra cá!). A casa que nós alugávamos, também em frente à Praia dos Ossos, ficava a umas três casas daquela onde fui com o Maré.
Tiramos a roupa, no escuro, transamos, não foi muito bom, pra variar, ele disse alguma coisa e se levantou, e eu fiquei na cama. Pouco depois, ele voltou, encostou no meu braço, sem dizer nada, e eu achei estranho, porque sua mão estava gelada. Vi, na penumbra do quarto, alguém passar pela porta. Minha primeira reação foi perguntar “Quem é você?”. A segunda foi me levantar, sem esperar pela resposta, pegar minhas roupas, me vestir correndo, sair de lá, xingando (a porta estava aberta, não encontrei ninguém), e ir direto pra minha casa. Como você já deve ter adivinhado, quem tinha voltado pra cama não era o Maré, mas o primo dele, o caseiro. Eu mal conhecia esse primo. Já o havia visto algumas vezes: era feio, parecia antipático, e tinha uns 23 anos, por aí. Eu só deduzi que era ele porque ele e Maré sempre andavam juntos.
Cheguei em casa e contei pros meus pais, que ficaram horrorizados. Meu pai ainda foi até lá, furioso, mas a casa estava trancada e não havia ninguém. Algo que lembro muito bem é que eu estava preocupada com a minha reputação. Pensava o que os dois iriam falar de mim. Minha mãe me disse, na lata: “E você ainda se preocupa com o que as pessoas dizem?”. Aquilo foi importante, porque me fez pensar. Na hora eu respondi pra mim mesma: sim, me preocupo. Mas em seguida refleti: por que essa preocupação? Muda alguma coisa? Muda o que eu sou? E parei de me preocupar. Foi naquela ocasião, aos 16 anos, que deixei de dar ouvidos ao que os outros diziam de mim. E olha, essa sensação é libertadora.
Nos dias seguintes, cruzei com aqueles dois na praia, no fliperama, na rua. Eles me olhavam feio, eu olhava pra eles mais feio ainda. Acho que os xinguei, e eles me xingaram de volta. Lembro de ter alertado algumas amigas de que sair com um equivalia a sair com os dois. Mas demorou muito tempo pra eu me convencer que eu não tinha feito nada de errado. Eu não era culpada.
Podia ter sido muito pior, claro. O primo podia ter me forçado a transar com ele. Os dois podiam ter me estuprado. Podia haver outros rapazes esperando a sua vez na casa. E se eu tivesse transado com o primo sem saber que era ele, achando que era o Maré, e descobrisse logo depois? Isso não seria estupro? No meu entender, seria. Porque o meu consentimento era pra transar com o Maré, não com o primo.
Não sei o que a lei diz sobre isso. Sei que não fui a primeira (quase) vítima dessa “troca”, nem serei a última (tem histórias do Nelson Rodrigues que falam disso). Mas pra mim foi um choque, porque me mostrou que não importava tanto como eu encarava minha sexualidade. Pra mim era algo natural e positivo. Mas havia rapazes pra quem, só por eu não ser virgem, só por eu querer transar sem compromisso sério - e, logicamente, só por eu ser mulher, já que pra homem o padrão é diferente -, eu era um objeto sem valor, sem autonomia, pronta pra ser passada de mão em mão.
Isso faz 25 anos. Um quarto de século. Pelo caso de Joaçaba, vejo que pouco mudou. Quer dizer, mudou sim: agora eles têm celular com câmera pra filmar e passar pros amigos.




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