SÓ LEMBRAMOS QUE ERA HOMEM
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SÓ LEMBRAMOS QUE ERA HOMEM


A Renata escreveu um post que me fez lembrar de uma das minhas histórias de horror (porque, vocês sabem, toda mulher tem pelo menos uma pra contar, e os homens, tolinhos, vivem confortavelmente achando que nada disso acontece, ou que só psicopatas atacam mulheres e crianças). O que me chamou a atenção na história da Renata foi o sentido de impotência, de sentir-se perdida num mundo cheio de predadores. Com ela foram duas vezes no mesmo dia: primeiro, ela, com 19 anos, à tarde, sozinha no cinema, vendo Twister, quando viu um cara se masturbando a duas fileiras da dela. Chocada, ela foi pra outra cadeira, mas o cara a seguiu e sentou-se atrás. Ela saiu correndo do cinema, chorando, falou com a caixa da bilheteria, nada. Foi embora, ainda chorando, quando um homem de meia idade perguntou por que ela estava chorando e, em seguida, disse que sabia como consolá-la. O que você faz com monstros assim? Esse último é do tipo que, se ouvir que o pai dele tá estuprando uma menina, não vai denunciá-lo, e sim reivindicar a sua parte.
Renata, muito eloquente, diz sobre o masturbador no cinema: “não me lembro se era velho ou jovem, branco ou negro, careca ou cabeludo, gordo ou magro. Só me lembro que era homem”.
Eu lia aquilo e pensava: putz, que azar, dois tarados no mesmo dia?! Na mesma semana é totalmente normal, mas no mesmo dia?! Aí me lembrei que eu também tive meu dia premiado. Já contei aqui, mas quero contar de novo. Eu tinha mais ou menos a idade da Renata e vivia em SP e queria muito ver Era uma Vez na América, que tava passando no Cine Bijou, na Praça Roosevelt. Como o filme dura quatro horas, não arranjei ninguém que me acompanhasse num dia da semana, e lá fui eu sozinha. O cinema estava vazio, era oito da noite. Mas homem não pode ver mulher sozinha, né? Veio um sentar-se ao meu lado. Eu me mudei de cadeira. Aí veio outro. Tive que me mudar de novo. E mais outro. Acho que foi um total de três ou quatro vezes. Quatro completos imbecis incapazes de entender que eu tinha ido ao cinema pra ver um filme, não pra arranjar namorado, transar, ou ser musa de suas masturbações. Gente, tarado se masturbando no cinema é a coisa mais comum que existe. Minha mãe, que já era cinquentona na década de 80, foi ver Berlim Alexanderplatz, que deve ser um dos programas mais deprês do mundo, no cine Belas Artes (que talvez será tombado). E um sujeito foi se masturbar ao seu lado mesmo assim, porque, né, pra que mais uma mulher iria a um cinema de arte ver um filme do Fassbinder se não fosse pra servir de inspiração prum macho? Uma leitora contou uma vez que um criminoso (não dá pra atenuar) ejaculou na perna da irmã dela no cinema. Outra, mais sagaz, com uma reação mais rápida, assim que notou o que estava acontecendo, levantou-se e falou, em voz altíssima pra todo mundo ouvir: “Será que o tiozinho pode bater uma em outro lugar?”. Pra mim, sinceramente, é chocante que essas coisas que aconteceram comigo vinte e poucos anos atrás sigam acontecendo. Não podemos nos calar. Nada de abaixar a cabeça e ter vergonha. Quem tem que ter vergonha é o desgramado que acha que tudo bem se masturbar em público. Levante-se, grite, chame o segurança na hora. Não prenderam um carinha de 18 anos por beijar um garoto de 13 que era sua paquera, ambos de comum acordo? Então acho que há base pra prender um idiota te perseguindo pelo cinema com as mãos por baixo das calças.
A gente facilita demais a vida desses infelizes se apenas vamos embora ou mudamos de lugar. Eles não vão dar a mínima e buscarão a próxima vítima. Tá muito fácil pra eles. Já contei que fiquei perplexa com a minha passividade faz uns cinco anos, numa viagem de ônibus entre Floripa e Joinville. Um senhor de uns 65, 70 anos, sentou do meu lado. Até aí era poltrona marcada, tudo bem. E o sujeito desandar a conversar comigo? Tudo bem também, eu sou simpática, algumas pessoas são carentes, eu converso. Mas ficar segurando a minha mão? E beliscar a minha perna? Não, aí não tá tudo bem. Começar a dizer que eu era bonita e fazer gestos duvidosos? Enveredar por uma conversa ambígua? Definitivamente não tudo bem.
E qual foi a minha reação diante de tudo isso, euzinha aqui, que me considero feminista desde os oito anos de idade? Foi fazer um escândalo, gritar, parar o ônibus e exigir que o cara trocasse de assento? Não, nada disso. Primeiro foi usar um dos subterfúgios mais covardes e machistas que existem, mencionar que sou casada. Porque, né, se o medonho sabe que eu tenho dono, talvez ele me deixe em paz. Isso raramente funciona – eles não são ciumentos. E também, o cara tem que me respeitar porque eu sou um ser humano que merece ser respeitado, não por eu ter um homem. Então eu levei loooongos minutos até esboçar uma reação (até porque, admito, eu sou lerda e demoro pra entender a situação). E aí, quando vi que de jeito nenhum que eu iria pegar no sono ao lado do taradão, o que fiz? Falei pra ele mudar de poltrona? Que nada, eu sou uma trouxa. Eu inventei uma desculpa pra que eu, hiper florzinha delicada que sou, me mudasse de lugar, sem ofender os sentimentos daquela pobre alma libidinosa.
E quero acreditar que, já num novo lugar, já segura, eu me senti imediatamente mal por ter sido tão passiva. Eu pensei: não acredito que eu fui gentil com um verme desses. Só porque ele era velho? E daí? Isso lhe dá carta branca pra ser palhaço? E nessa hora eu decidi: nunca mais. Tá muito fácil pra eles. Quequié, um cara começa a me importunar e o máximo que pode acontecer de ruim é eu inventar uma desculpinha pra mudar de lugar? Temos que dificultar, senão eles não vão mudar (e lógico que cabe a eles mudarem o comportamento. Mas também acho que precisamos reagir).
Voltando a minha sessão de Era uma Vez na América no cine Bijou. Acabou o filme, meia noite, eu peguei um ônibus e fui pra casa. Morava numa área nobre de SP, perto do FHC, em Higienópolis. Desci na Av. Angélica e, quando estava na R. Sergipe, quase em frente ao prédio onde eu morava, fui agarrada por trás. Nem tive tempo de pensar: eu caí. Meus óculos caíram longe. Eu me levantei imediatamente e parti pra cima do cara. E o cara também nem piscou: ele fugiu em disparada. E eu atrás dele, gritando, furiosa. É até engraçado, né? Por que corri atrás dele? O que eu faria se o pegasse? Não tenho a menor ideia, mas não foi pensado. Foi instintivo. Eu tava com muita raiva, e isso deve deixar a gente mais forte.
Aí fui pra casa. Cheguei lá, imagino, chorando a essa altura, e meu pai, ao ver meu desespero, desesperou-se também. Ligou pra polícia e desceu pra rua, querendo muito encontrar o criminoso. Nada. Ficamos lá os dois, com muito ódio e nojo de viver num mundo em que uma mulher não pode sair sem ser atacada. E eu me lembro exatamente o que a Renata se lembra: não me lembro do rosto do sujeito que me derrubou, ou dos quatro que me abordaram no cinema, tudo isso no mesmo dia. Não me lembro se eram velhos, jovens, magros, gordos, nada – só me lembro que eram homens.
E aí, quando a gente conta essas coisas, a reação masculina costuma ser: putz, você tá me ofendendo! Você tá generalizando e atacando o meu pobre gênero! Eu não sou assim, e eu nunca atacaria uma mulher! Pelo contrário, se alguém fizesse isso com a minha mulher, minha mãe, minha irmã, minha filha, eu matava o crápula! Pois é, não são todos os homens. Mas sabe, são muitos. São demais. E eles queimam o seu filme também. Porque, quando a gente vê um cara sozinha no cinema, quando um cara vem na nossa direção à noite, na rua, a gente não tá nem aí se você é bonzinho. É homem, a gente tem medo. Nosso passado, toda uma vida de humilhações e abusos começados quando a gente ainda é criança, nos ensinou a ter medo. Não tente nos convencer que nosso medo é irracional. Quer mudar a situação? Ajude a mudar os homens. Seus amigos, seus conhecidos, seus parentes. O quê, eles também jamais fariam qualquer barbaridade contra uma mulher? Puxa, que estranho. Alguém tá fazendo. Se toda mulher tem uma história de horror pra contar, e você não conhece nenhum homem que protagonizou uma dessas histórias, há algo de errado nessa equação. Vai ver que a Terra foi invadida por marcianos e ninguém nos avisou.
E a gente até fica feliz que você diga que mataria alguém que humilhasse uma mulher conhecida sua, mas não é isso que importa. A gente não quer um príncipe encantado pra nos salvar. A gente não quer um justiceiro, até porque justiceiros muitas vezes costumam cobrar a fatura. Não. A gente não quer ter que se defender e nem quer que você nos defenda. A gente só não quer ser atacada. Agora olha nos meus olhos e me diga que é pedir demais.




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